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Textos

A Cinemateca, as Estrelas e Jorge Silva Melo

por Fernando Guerreiro · 8 de Junho, 2020




Verão de 1966 na Cinemateca, em Paris, com o Eduardo e o Jorge


Os corpos no cinema tendem a puxá-lo para o que nele há sempre de “encarnação”, deslocando-o da planometria 2D da imagem para um jogo mais roliço de formas e volumes sempre tendencial ou desideralmente 3D (e lembro-me do lema de Cézanne – “tratar a natureza pelo cilindro, pela esfera e pelo cone, pondo tudo em perspectiva” – que Fernand Léger aplicou quase literalmente à pintura e ao cinema).

Mas não só. Certos actores e actrizes trazem já consigo, e fixam-na, uma ideia (forma) de cinema. Basta-lhes aparecer, estar lá e o resto, tanto o real como a forma, não têm mais do que adequar-se a eles ou aceitar ser fagocitados pela sua voracidade, presença. Casos, entre outros, de Marie Dubois, Marina Vlady, Kim Novak ou hoje Eva Green – mas também Laurent Terzieff, Pierre Clementi, Randolph Scott ou Gary Cooper.

Jorge Silva Melo, em «E a vida que nos filmes deixaram» (texto escrito para um catálogo em 1987 e depois recolhido em Deixar a Vida [Cotovia, 2002]), observa que cada actor fixa um tom, registo tanto “formal” (um tipo de mise en scène, estilo) como “musical”: um modo de actuar, mover-se e falar liricamente quer com o corpo (Rita Hayworth em The Lady from Shanghai / A Dama de Xangai [1947]), quer com os objectos/ adereços ao seu dispor (Greta Garbo na cena do quarto de Queen Christina / Rainha Cristina [Rouben Mamoulian, 1933]) (Melo: 101-102).

Algo que é “figurado” (no sentido forte, quase litúrgico do termo) por Manoel de Oliveira em Benilde ou a Virgem-Mãe (1975): a saber, de que modo uma actriz flat (Maria Amélia Matta) pode dar a presença desse extra (mais) – dê-se-lhe o nome de “alma” ou “aura” – que introduz o ponto de vista não só do ∞ mas sobretudo da inesgotabilidade de duração e sugestão (da sua presença, físico) que contém em si um corpo.

A sugestão de “alma” (“espírito”) mas também, como pretendia o jovem Lukács (entre 1911-1913), a plena assunção do cinema como jogo dos reflexos, simulacros ou superfícies: “o mundo do cinema caracteriza-se por uma vida sem fundo nem perspectiva, sem distinção de peso ou de qualidade (…), uma vida sem alma, uma pura superfície”. Como dos “gregos” afirmava Nietzsche, do cinema pode-se também dizer que ele é profundo enquanto superfície. Escreve ainda Lukács: “[nele] o homem talvez possa ter perdido a alma mas ganhou um corpo” («Pensées sur une esthétique du cinema», in Daniel Banda/ José Moure [ed.], Le Cinéma: naissance d’un art, 1895-1920, Flammarion, 2008 [217, 219]) (traduzimos).

Manoel de Oliveira (leia-se o «Poema cinematográfico» de 1986) também coloca esta questão ao relacionar o carácter de “presença” (cheio) do Teatro com a “espectralidade” (ténue) do Cinema. E contudo, paradoxo de 2º grau (o primeiro nível dessa contradicção encontramo-lo na tese, tantas vezes repetida, de que “o cinema não existe, o que existe é o teatro”), o “real” do Teatro (a “vida”) passa enquanto o Cinema, ao “fixar”, faz durar as coisas, comunicando-lhes uma “densidade”, e “essência” (?), para que depois, na projecção, tudo isso (essa suposição de “ser”= simulacro), se dissipe, volatize  e se torne “espectro” (”imaginário”).

Ao abordar a relação entre Teatro e Cinema, sobretudo do ponto de vista do actor, Silva Melo  confronta-se também com o paradoxo de como, sendo o cinema um dispositivo “externo” (“não se filmam almas”, redizem-no Oliveira e Bresson, apenas os traços, vestígios que elas deixam da sua passagem), pode ele dar (filmar) o “cheio” (plenitude) da presença do actor [75]? Era esse também o drama de Vera Nestoroff, a actriz de Si Gira!… (os Cadernos de Serafino Gubbio, operador de câmera) de Luigi Pirandello (1915). Para ele, no cinema, o actor vivia um duplo exílio: o do carácter “vivo” (e interactivo) da presença em palco mas também o do seu “corpo” (e imagem), de que se vira despossuído por troca com uma entidade espectral, um jogo de sombras e luzes inconsistente e fortuito.

E contudo, conclui Silva Melo, “a voracidade de que o cinema é feito tem a ver com a perfeição do vazio” ]112], a “força de necessidade” do seu dispositivo inumano e mecânico (o seu inconsciente vampírico [Pirandello]).

A star, na sua béance – sensação abissal de carência, disponibilidade ao “vazio” que ela convoca com a necessidade (urgência) absoluta da sua cobertura (pela câmera, imagem ou espectador) –, seria mesmo um bom exemplo disso: “não será essa incompletude  [interroga-se Silva Melo] a própria natureza da <estrela> que existe não pelo que <faz> mas pelo que, apresentando-se, deliberadamente <deixa por fazer>”? [67].

Haveria dois modos, simplificando muito, de se situar – se não ocupá-la – nessa “incompletude”: ser uma pura máscara, que se cola/ sobrepõe a esse vazio sem o procurar ocupar ou compreender (Joan Crawford), ou então personalizá-lo, absorvê-lo ou introjectá-lo, construindo uma “ficção” (pessoa ou personagem) que lhe dê sentido (Bette Davis).

Jorge Silva Melo observa que Bette Davis “faz de actriz”, “foi esse o seu mito” [68], e para isso apoia-se num duplo efeito (ilusão) de profundidade: psicológica, claro – pela construção, motivação do personagem (Robert Aldrich considerava-a uma actriz “realista”) –, mas também uma profundidade de campo espacial e dramática, fazendo corpo (figura) com toda uma tendência dita “naturalista” do cinema americano dos anos 40 e 50 que teorizou André Bazin (pense-se, por exemplo, em Beyond the Forest / A Filha de Satanás [1949] de King Vidor).

No entanto, tanto uma como outra faziam, como diz Silva Melo, filmes em (Crawford ou Davis) [102], de acordo com o princípio de que tudo, neles, devia ser submetido à sua imagem. “Só os maus filmes são suficientemente bons para ela”, escreveu um crítico a propósito de Davis embora se trate de uma afirmação que se também pode aplicar à Crawford [71].

Ao contrário de Bette Davis, em quem encontramos uma démarche quase obsessiva de interiorização= identificação com o personagem que a leva a encarná-lo – não só dar-lhe corpo mas revesti-lo de órgãos, massa e volume, mesmo que isso a torne disforme e monstruosa (Baby Jane [1962] talvez seja o culminar dessa tendência) –, no caso de Joan Crawford (tirando talvez os seus melodramas e woman movies da Warner [vd. Mildred Peirce / Alma em Suplício de Michael Curtiz, 1945]) a lógica é mais a da ex-carnação, descorporização, tornando-se a actriz uma espécie de suporte=manequim da “ideia” (arquétipo”) do “personagem”, de estrela, com o qual ela se veio progressivamente a identificar.

Proteu e Medusa, portanto. Bette Davis aliás dizia, com alguma razão, que ela era uma “actriz” e Crawford uma star; enquanto ela construía e destruía (autofagicamente) imagens (de si própria), a Crawford edificava laboriosamente uma máscara que ainda surge com alguma carne em Johnny Guitar (1954) de Nicholas Ray  que progressivamente, a partir dos anos 50, se des-carna (Strait-Jacket / Almas Mortas [1964] de William Castle). Também por isso, se se quiser, a Crawford é uma actriz mais trágica e a Davis mais dramática.

No entanto, a falência do “sistema dos estúdios” do cinema clássico americano nos anos 50 e 60 acaba por arrastar consigo a crise dos modelos de representação tanto do real como das paixões no cinema. Crise do patético (a tendência para o “highly theatrical” da época [85]) que se traduz, do ponto de vista do trabalho dos actores/ actrizes, na decomposição física (com introdução do feio e do desagradável), formal (o “expressionismo” neo-barroco do noir e do melodrama) ou do registo (agora matizado pelo grotesco) dos “modelos”.

Jorge Silva Melo observa, e bem, que a técnica do Método (Lee Strasberg) conduz, por um lado, à psicologização dos actores (personagens) masculinos [79] – ou seja, uma “histerização” que os feminiza (James Dean em East of Eden / A Leste do Paraíso [1955] de Elia Kazan ou Montgomery Cliff em A Place in the Sun / Um Lugar ao Sol [1951] de George Stevens) – e, por outro lado, acrescentamos nós, a uma virilização (masculinização) pelo excesso/grotesco (no duplo registo da paródia e do horror) das actrizes. “O Método preferiu actrizes <feias e sensíveis> e pediu-lhes uma representação histérica à beira do cabotinismo” (Shelley Winters, também no filme de Stevens?), conclui [88].

Beyond the Forest (KIng Vidor, 1949) | Strait-Jacket (William Castle, 1964)
Beyond the Forest (KIng Vidor, 1949) | Strait-Jacket (William Castle, 1964)



Vai-se assim da “contensão” (constrição feminina) do Método (Montgomery Cliff mas também Paul Newman em Sweet Bird of Youth / Corações na Penúmbra [1962] deRichard Brooks) à sua “explosão” (sobretudo feminina) hiper-teatral e patética: o “grotesco” de Crawford e Davis, juntas, em Whatever happened to Baby Jane? / O que aconteceu a Baby Jane? [1962] de Robert Aldrich que culmina, com toda a lógica, na fase terminal “gótica” ou gore das suas carreiras (Davis: The Nanny / A Velha Ama [Seth Holt, 1965]/ Crawford: Berserk! / A Última Vítima [Jim O’Connoly, 1967]).

“O corpo está em falta [Le corps est un manque], trata-se portanto de o inventar e, para isso, há que fazer o seu luto”, lê-se como abertura de Le corps défait, livro (póstumo) de Charles Grivel (Les âmes d’Atala, 2019).

O imaginário (as ficções mas também as modulações de uma forma) constitui a força motora, sim, do trabalho de preenchimento da sensação de vazio que organiza (estrutura) um corpo – um trabalho sem fim, insanável, de que o luto permite, se não o fim pelo menos uma interrupção  (pausa) em que a figuração (a adopção, na queda, de uma pose) se torna ainda possível.

O trabalho (inteligência e sensibilidade) dos actores é manter aberta, nua, essa ferida.

Não desdenhemos portanto, nunca – mas mesmo nunca –, as últimas figurações (e filmes) destes actores e actrizes.

Fazem-nos compreender como os corpos têm sempre razão.



Fernando Guerreiro
Maio de 2020

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