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Sala de Projeção
Textos

Álbum de turma

por Duarte Mata · 26 de Maio, 2020
Safety Last!
Safety Last! ( Fred C. Newmeyer, Sam Taylor, 1923)

Falar da sala de cinema é também falar das pessoas com quem a compartilhamos. Cada espectador terá já tido noção (mesmo que inconscientemente) da diferença que uma boa audiência pode fazer numa sessão, sendo um acto de um ou mais dos seus membros o melhor sumário da força que um filme acarreta, como um espelho de um estado de espírito colectivo que nele(s) se vê(em) exteriorizado(s). Essa prova manifesta de perfeita sintonia entre o sentido no Eu e o observável no Outro pode ser o pormenor fugaz apto para transformar uma grande sessão numa memorável. O resultado são histórias individuais que se vêem transmitidas como pequenas revelações, apontamentos anedóticos em conversas com amigos sobre os efeitos emocionais ou físicos (o riso numa lúdica comédia, o susto num tenso filme de terror) do objecto cinematográfico por quem nutrimos tanta estima. Para quê descrever o que experienciámos internamente, quando vimos alguém ao nosso lado tornar-se uma corporalização viva de todo esse turbilhão imaterial que intensamente nos percorreu? 

Também eu tenho as minhas curtas histórias das maravilhosas sessões a que assisti: aquela impactante do Joker (2019) que foi das mãos de uma jovem afligida a tapar os olhos às da audiência inteira a aplaudir em uníssono no final; ou a outra tão, mas tão bonita do One From the Heart / Do Fundo do Coração (1981) que terminou com a rapariga atrás de mim a esconder o rosto lagrimado no ombro consolatório do companheiro. São apenas dois exemplos de reacções de adultos que, para mim, resumem bem a atmosfera palpável naquelas sessões, desconfortante no primeiro caso, melancólica no segundo, ambas íntimas, ambas extraordinárias. De qualquer das formas, prolongo-me escusadamente. Não é dos adultos que quero falar.

A Cinemateca Portuguesa é a mais bela das salas de cinema, igreja suprema onde a devota cinefilia presta eterna homenagem, fazendo de cada filme uma pequena missa e do ecrã sacro sacerdote. Mas há outra que merece estar pelo menos ao seu nível: a Cinemateca Júnior. Sempre que atravesso aquela porta do Palácio da Foz guardada pelas faces angelicais de Chaplin e Jackie Coogan em The Kid / O Garoto de Charlot (1921), sei que sair desapontado dela é impossível. E é impossível, acima de tudo, por causa do seu público, aquele a quem Fernando Pessoa escreveu o verso imortal: “mas o melhor do mundo são as crianças”.

Se são o melhor do mundo, não sei. Mas não duvido de que se trate da melhor audiência de todas. Sim, claro, algumas são irrequietas, outras têm a peculiar mania de se estirarem no chão, e ainda há aquelas que, se não ficarem cativadas pelo que se passa na tela, teimam em dizer aos pais com uma frequência e volume um bocadinho importunadores: “Quero ir embora”. Mas, com todo o respeito aos que foram meus companheiros de sala, quero reiterar: são a melhor audiência de todas. A que tem a mente mais aberta, a mais disposta a experimentar, a totalmente livre de quaisquer preconceitos. A que não liga absolutamente nada a se o filme é mudo ou sonoro, se a preto-e-branco ou a cores, se foi feito por um grande auteur ou banal metteur en scène, hoje ou há exactamente um século. Querem lá elas saber do estatuto popular, crítico ou académico que o objecto ganhou com os anos. O que lhes interessa é pura e simplesmente se as encanta ou não, e por isso é a mais honesta nos seus risos e capacidade de deslumbramento. Há uma ingenuidade no olhar delas que os anos deixará maculada, mas que, enquanto dura, fá-las exprimir as mais doces, sinceras e vivas reacções. E com elas tornar a experiência em sala algo inefável.

Safety Last! / O Homem Mosca (1923), com Harold Lloyd, foi uma delas que presenciei. No que toca ao cinema em sala, tenho o hábito de me sentar na primeira fila (onde prefiro sempre estar, recebendo as imagens em primeira-mão, ainda novas e ainda frescas, como é dito algures no The Dreamers / Os Sonhadores [2003]). Naquele dia, no entanto, por um motivo que o tempo já esvaeceu, fui parar a uma das do meio, algo que se revelou um pormenor precioso naquele evento. Não preciso de escrever que o riso é contagiante, que nos sentimos particularmente estimulados em soltar uma boa gargalhada quando não somos os únicos a fazê-lo, e que o impacto de um comentário espirituoso ou de uma piada visual é directamente proporcional ao número de pessoas que o vêem. É um facto: numa comédia, o riso da audiência é uma parte fulcral – a mais fulcral – da banda sonora. Se o riso tem esta força, quanto mais o das crianças, cujos padrões humorísticos são menos exigentes e as gargalhadas mais ressonantes e desprendidas. Bastaria isto e já teria esta secção justificada. No entanto, quero alargar-me.

Quem já viu o filme (e mesmo alguns que não o viram) terá presente a imagem icónica do protagonista pendurado nos estreitos ponteiros do relógio de um alto edifício. Essa imagem advém de uma aposta que força Lloyd a escalar até ao topo um prédio de 12 andares, apesar de lhe faltar habilidade e coragem para fazê-lo. É por isso que parte para o perigosíssimo acto na esperança de, à primeira oportunidade, trocar de lugar com um amigo audaz e experiente que no interior do edifício se encontra. Infelizmente, este amigo está a ser perseguido por um polícia, o qual irá tornar o que devia ser uma substituição rápida e eficaz numa tarefa angustiosa e inexequível.

Não é possível descrever acuradamente as respostas dos rostos infantes ao que viram. No entanto, com a complacência do leitor, posso arriscar enveredar numa parca tentativa. Lloyd começa a escalar, eles começam por olhar boquiabertos para o ecrã. A pouco e pouco, o herói vai subindo o infindável colosso de tijolo, enquanto o amigo, por causa da farda autoritária obstinada em segui-lo, lá vai sendo obrigado a adiar o momento de resgate. “Continua a subir!”, surge repetidas vezes no cartão. As crianças, a cada novo esforço, inclinam-se um pouco à frente, com os dedos sempre a apertarem nervosamente os braços dos assentos. A certa altura, Lloyd chega a uma janela de um andar muito elevado e prepara-se para entrar no edifício. “É agora?”, ouço dizer perto de mim. Não é. Lloyd escorrega e acaba agarrado aos referidos ponteiros do relógio, o qual acaba por ficar periculosamente debruçado sobre a rua. Oh, o choque! Alguns petizes soltam esgares de medo e admiração, outros levam as mãos à cabeça, mas todos são a prova de como a vertigem de Lloyd é penosamente partilhada. Felizmente para ele (e elas), uma corda chega e a escalada pode enfim ser retomada. Finalmente, Lloyd chega ao topo. Aguardamos todos impacientes o momento em que sairá do parapeito para se refugiar no telhado, cada vez mais próximo. Está quase, quase lá… Mas eis que um maldito anemómetro em constante rotação bate na cabeça do herói, e ele, zonzo com a pancada, vai dançando na borda do edifício, a um mero e simples passo de receber o beijo mortal do pavimento das ruas. É demasiado para as crianças. Levantam-se, gritam, cobrem os olhos, comportamentos todos eles levados ao paroxismo quando a personagem fica com o tornozelo preso na corda, oscilando, qual pêndulo humano, sobre os arruamentos da cidade. A sessão está ao rubro, e nem que o próprio Lloyd entrasse sala adentro dizendo (ou pantomimando) que estava bem e de boa saúde, conseguiria o feito hercúleo de consolá-las. É o herói do ecrã que está em suplício, portanto, é no ecrã que tem de haver garantias do seu bem-estar. Por sorte, estas não tardam. Uma oscilação demasiado larga e Lloyd alcança por fim o telhado, caindo nos maviosos braços da amada que ansiosamente o espera. Marcando este abraço o fim de tão frementes inquietações, voltam os pequenos a sentar-se, saboreando o alívio do final feliz que tanto tardou.

Nunca poderia ter este momento em casa, e também nunca poderia tê-lo numa sessão com adultos (ou, pelo menos, não com esta energia). Por causa do inevitável cepticismo que brota com a idade, é-lhes mais difícil abandonarem as dúvidas de que se trata tudo de um truque, de que não há perigo genuíno para o actor, e de que o que vemos resulta provavelmente de um uso exímio da perspectiva forçada, a colocação da câmara no sítio certo para a criação de ilusões de óptica com o máximo efeito. Mas as crianças, essas, têm a bênção da inocência. Com elas, a suspensão da descrença é mais real. As imagens são-lhes mais límpidas, confiáveis, verdadeiras, e por isso a atmosfera que criam é a de puro pânico, ansiedade e excitação. Para as crianças, o cinema não é um amigo mentiroso. Só um amigo. Por isso, é um privilégio enorme compartilhar a sala com elas.

E talvez tenha sido preciso todo este relato com crianças para chegar a isto. Hoje, ao manusear a minha colecção de bilhetes (sejam da Cinemateca Júnior, da Cinemateca, ou de outros espaços que me são queridos), tenho a mesma impressão de estar a folhear um antigo álbum de turma. Lembro-me dos momentos em que as lições começavam e todos nos sentávamos imóveis, desautorizados em abordar conversas paralelas (o “chiu!” é a única expressão que se ouve tanto na sala de aula como na de cinema), olhos fixos no que à frente nos era posto, tentando assimilar o que nos era contado e com ele aprendendo. E, ao mesmo tempo, como também num álbum de turma, outras recordações são-me trazidas: o dos momentos de intervalos entre aulas, onde era dada quase rédea solta às nossas emoções e nos sentíamos mais próximos, mais livres, mais vivos. Uma sala de aula e, simultaneamente, um recreio. É uma grande escola o cinema.


Duarte Mata

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