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Sala de Projeção
Textos

Autocinegrafia

por José Bértolo · 15 de Junho, 2020

1.

1.1

Uma cena: Repas de bébé, 1895. O lar, a família, a casa, a refeição. E, contudo, diz-se que os primeiros olhares se escapuliram insistentemente para a folhagem, ao fundo. O movimento das folhas exibia o seu fulgor sem que ninguém lhe tocasse. O cinema revelou o movimento do mundo.

1.2

Algumas outras cenas lumièrianas: cavalos a atravessar ruas, o fumo soprado pelos comboios, a oscilação das ondas na praia.

1.3

Le Livre magique, 1900. Em palco, nada existe que possa mover-se sem que alguém lhe toque. Às folhas de árvore sucedem-se as folhas de um enorme livro, de cujas páginas mortas emergem corpos vivos. O milagre da encarnação.

1.4

Vie et Passion du Christ, 1903. Cristo emerge e caminha sobre a superfície movente do mar. Ao espectador é dado a escolher entre a retórica da técnica e a verdade verdadeira.

1.5

Segunda metade da década de 1900, os primeiros filmes de Griffith. Lillian Gish age, reage, pensa, sofre. Nós — em plena expansão — agimos, reagimos, pensamos, sofremos.

1.6

A verdadeira paixão do cinema é a vida, e a minha paixão pelo cinema é uma paixão pela vida. E contudo, no cinema, as folhas de árvore não são folhas de árvore, os cavalos não são cavalos, o fumo não é fumo, as ondas não são ondas, as lágrimas da Gish não são lágrimas. O que são, então, as imagens deste cinema apaixonado pela vida com a qual fatalmente ele parece não se poder fundir?

1.7

Para alguns de nós, o cinema concretiza um inescapável amour fou a três. Eu, a vida, o cinema. It’s a gentlemen’s agreement. Mas este é um relacionamento mais espinhoso do que o do filme de Lubitsch, porque se dá no plano da vida, que, ao contrário dos filmes (e especialmente dos filmes de Lubitsch), é vaga e informe. De entre os três elementos, a vida é o ponto gravitacional, aquele que absorve os restantes vértices. Na verdade, não se trata sequer de um triângulo. Lição de geometria: três pontos coincidentes são um ponto.

1.8

Sublinhe-se “alguns” no início do ponto anterior. Tal amour fou não é de todos os que amam o cinema, dado que este permite muitas formas de amor. O amor a que me refiro absorve-nos, indistingue-nos, cospe-nos num lugar solitário; corrói a linguagem, rasura a sociedade, não conhece (nem deseja conhecer) a possibilidade da crítica. É um puro e monstruoso ser.

1.9

A tragédia da paixão do cinema pela vida é a tragédia destes de nós que se apaixonam pelo cinema no entroncamento com a vida, destes de nós que se proscrevem da história, da sociedade, da eloquência. Constituindo eu, vida e cinema a mesma unidade monstruosa, existem, no entanto, marcações, fronteiras, que assinalam a impossibilidade última da fusão. Donde, sendo eu vida e cinema em simultâneo, e o cinema eu e vida em simultâneo, e a vida eu e cinema em simultâneo, nunca seremos exactamente o mesmo. Três pontos é igual a um ponto, mas um ponto feito de um ponto é diferente de um ponto feito de três pontos.

1.10

Nesta equação irresolúvel, resta-nos, julgo eu, prospectivarmo-nos num futuro imaginário (ou, melhor, numa temporalidade outra que escape à tripartição convencional) em que eu, o cinema e a vida já não respondem por palavras diferentes, porque não têm existências diferenciadas.

1.11

Este é o cenário ideal em que vejo filmes e em que os filmes me vêem.

2.

Ao ver Kurutta Kajitsu recentemente, lembrei-me de The Innocents — o primeiro filme a que assisti na Cinemateca —, quando uma personagem diz: “Innocence can be hard to beat”. Estes filmes pouco têm em comum para além de proporem narrativas que culminam numa violenta perversão da inocência. Porém, quando justapostos, eles cobrem com relativa eficácia as formas e as forças que o cinema insiste em encontrar em mim.

O filme de Jack Clayton dá-se a ver e a ler, oferece-se à descodificação em exercícios de mostração e ocultação, bem como exibe (com muita psicanálise, tal como deve ser), matematicamente, o puzzle insolúvel do humano. O cinema psicológico — de resto, como a vida invisível que ele emula — joga-se entre medos e desejos.

Do filme de Nakahira, por seu turno, golpeiam-me o mar, o anoitecer, os objectos, os corpos. A ilusão da cor, da textura, do toque. A vertigem da matéria.

Fantasma e matéria edificam o labirinto do cinema em cujos becos cegos julgo que me sinto acontecer:

3.

(algumas paragens e desvios)

Os cabelos ruivos de Delphine rasgando o azul esverdeado da piscina. O mediterrâneo a doirar a pele de Antígona. A enorme sombra projectada de uma condessa enlouquecida por dentro da noite. Uma aparição que termina a vida a escrever em código. Autobiografia a quatro mãos numa casa assombrada. Um pacto com o diabo em italiano mudo. Asta Nielsen tocando lira labareda — e o nitrato queima (light is calling). Num pescoço, marcas de estrangulamento por trança. A pancada no (meu) peito quando os olhos (muito azuis) dele descobrem o (pretérito) colar no espelho. O (nosso) reflexo de horror quando um beijo revela um corpo vazio. Uma campa, um bouquet, um quadro de museu e duas quedas. Depois do último banho, um mergulho no encoberto e um olho. Um suicídio falhado na casa de Tchékhov. Um suicídio falhadamente bem-sucedido no mar francês. O assassinado a emergir, vivo, das águas. Um beijo junto ao rio, uma desfocagem e uma elipse. Travellings no Sena. Elefantes no Ganges. As amplas sombras no salão de música. A guitarra ao som do Mekong. Pela noite, um clarão na floresta e um tigre. O sol que, colocado em abismo, fura a canópia e toca a objectiva: irradia. Aquela floresta para onde vamos morrer, mas é demasiado tarde porque o cinema já nos fixou. Outro demasiado tarde: uma carta sem assinatura. Outros tempos aquém do tempo: um desfalecimento no exterior de um duelo; wuxias escritos num quarto de hotel; androides retardatários. Tempos ganhos: “vivi durante as poucas semanas em que te amei” [e isto não ser uma metáfora].

Outros sussurros:

— Somos demasiado velhos para viver de sonhos.

— Eu quero mais. Tudo. Demasiado.

— Não me fotografe, peço-lhe.

— É melhor ires. Estou a começar a gostar de ti…

— Ulisses apercebeu-se demasiado tarde de que perdeu o amor de Penélope devido a uma das suas virtudes.

— Eu não sou o teu herói romântico!

— Sou a lua, o céu, uma boca procurando outra boca.

— Mente-me [pausa sobre a lágrima a pesar no rosto dela].

— Não te faças de Hamlet, meu filho.

— Duvido, duvido, duvido, que venhas a amar-me como te amo a ti.

— O que te fará feliz far-me-á infeliz.

— Continuo a odiar-te, mas ainda assim vim.

— Procurei-te em todos os homens que conheci.

— Passam por nós, à nossa beira, incólumes ao que neles projectamos.

— Deixo-te para que possas viver em paz.

— Agora, que estou cego, vejo.

Figuras: o pintor Schalcken e a condessa Bathory, Schefer e Bosch, Santiago e o tempestário. Um escritor póstumo em Tokushima. Uma linha de comboio em Taiwan. Geometrias no jardim alemão. Uma paixão perdida, um passeio no bosque e nevoeiro de Outono. Memórias de Agano e Kaminoyama (manchas vermelhas de dióspiros, mar de gelo, peixes na rede, imagens num pano, uma claquete). Traços de uma paisagem. Sobreimpressões aquáticas. Um mergulho no espelho. O mar interior de Seto. Ilhas: Aran, Fårö, Noirmoutier, Ouessant, St Kilda, Stromboli, a ilha da rapariga de vestido vermelho. Vestes ao vento nos subúrbios de Tóquio. Tempestades de areia no Texas. Tempestade na montanha escandinava. Encontros no fim do mundo, depois da meia-noite. Finisterra. Árvores (cerejeiras em flor, oliveiras, um marmeleiro elusivo). Um jardim na Lituânia e um hotel em Nova Iorque. Uma conversa no lago Annecy, em Grenoble, em Dinard, em Seoul, em Paris. Noutra Paris, uma mãe, uma filha [Dança dos Mortos] e um mapa. Fora do território cartografado, um interlúdio de Verão (e um fantasma para sempre encaixado nos ombros). Stanwyck, desejo e gaivotas. Um pássaro cor de laranja numa gaiola. Um voo e um casamento durante o sono. Um automóvel apaixonado. Sexo e ekstase. Mulher-insecto na areia. Dois fantasmas a desaparecer na neve. Dois homens, como aves, numa cozinha verde. Um buraco no chão da sala. Uma casa burguesa e uma mulher infiel. Um acidente e uma prova de amor. Acordar e vislumbrar, sobre a mesa, as flores roubadas ao morto. Uma flor suspensa no ar, perante um condenado à morte. Um condenado à morte, de costas, olhando as montanhas. O fim de um homem que nos legou o seu testamento em filme — 

(ruas vazias, esculturas de Ille, animais [cães danados, kuronekos, as raposas de Kurahara, veados sirkianos no Jardin des Plantes, la daphnie, les oursins, la pieuvre], campos de flores, árvores de fruto, plantas e vasos, Das Blumenwunder, céus de cores diferentes, mares em diferentes aberturas, astros)

— Glas: metamorfose e expansão.

Um homem que encolhe até se tornar entulho brilhante. Matéria e fantasma.


José Bértolo

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