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Sala de Projeção
Textos

Cinema na Cidade

por Vitor Ribeiro · 19 de Maio, 2020
Abel Ferrara
The Funeral (Abel Ferrara, 1996)

Um plano cheio com um helicóptero, Schwarzenegger de charuto, o movimento da hélice que parecia dirigir a máquina voadora para o balcão do Cine-Teatro Augusto Correia, na cidade de Famalicão. Os dias já tinham começado a decrescer, já deveria ser Outono, quando vimos Predator (1987) numa tarde de Domingo e eu nem sabia quem era John McTiernan, que aqui dirigia o austríaco musculado a liderar um grupo de homens em camuflado, expendables, para serem engolidos por uma floresta densa, por imagens e sons de outro mundo, mas como se estivessem num filme de guerra ou num western da Hollywood clássica; uma elipse de seis anos e a mesma dupla ofereceu-nos Last Action Hero, e desta vez Schwarzenegger rasgava mesmo o ecrã, ao encontro de um jovem espectador.

Um texto a pensar na Sala de Projecção, convida a partilhar experiências de adolescência e juventude, que encerraram um capítulo – depois viriam as sessões do Cineclube a partir da Vila de Joane em 1998 – na última projecção de que tenho uma memória vívida da sala da Lusomundo na cave de um centro comercial da cidade: o suor e as sardas, o rosto e os ombros da rainha do porno Julianne Moore em Boogie Nights (1997), onde descobria Paul Thomas Anderson a fazer de Scorsese, quando Scorsese já não queria ser Scorsese, depois do opus magnum Casino (1995). Se a sala de cinema era um abrigo da cidade, como em A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty (1972) de Handke e Wenders, onde por vezes se negociava a sessão com o projeccionsta da sala grande do Theatro Circo quando éramos o único espectador, pelo meio houve a possibilidade de cinefilia através da RTP, com um Fernando Lopes programador, com Bergman’s e Hitchcock’s que nos consumiam os vhs, onde a nouvelle vague rivalizava com os italianos, como na descoberta de Antonioni, no desaparecimento de Lea Massari numa ilha do mediterrâneo em L’Avventura (1960).

Mas, entretanto, lembrei-me de Vincent Gallo a sair de uma sala cinema em New York, em The Funeral (1996) de Abel Ferrara.

Ainda antes do genérico, vemos a troca de planos entre Gallo, na penumbra da sala com o sapato sobre a cadeira da frente, e o rosto em fúria de Bogart emThe Petrified Forest (1936), filme que definiria a sua ascensão, como o protótipo do gangster saído da lei seca dos EUA. O genérico coloca-nos no velório de Gallo (Johnny), numa rua povoada por italo-americanos de carros encerados, como se aquela conversa com Bogart se estendesse pela New York do fim dos anos trinta, não só um efeito de contaminação e uma indistinção entre a ficção e a realidade, mas também uma presença e perspetiva particular, privilegiada, sobre a História, que o Cinema se encarregará de reescrever, e em que a trilogia The Godfather de Coppola e os vários Scorsese, fazem figura de paradigmas, ao procurarem impor uma leitura do século XX americano.

“É essa a tragédia americana, precisamos de algo que nos distraia; os livros, a rádio e os filmes, fazem-nos sentir vivos.” Um diálogo endereçado por Gallo ao amigo próximo Ghouly (Paul Hipp), começa a dar-nos pistas sobre o espectador que ele é, o espectador que nós somos, um contraponto à imoralidade do amigo e um compromisso ético, uma moral, que também vive de uma ambivalência, de um apego pelo mundano. Vemos, então, Gallo a sair do cinema, o seu rosto, a desenvoltura dos seus movimentos, descrevem uma satisfação, como o fim de uma refeição, um inebriar ou a saída de um sonho, que se confronta com a luz do exterior. A realidade, a rua, vai trazer-lhe uma bala para a barriga, o seu corpo arrefecido será cercado por mulheres de negro a carpirem e homens habilitados para a vingança, para a matança do mandante, no jardim da sua casa, testemunhado pela mulher e pelos filhos.

Uma sala junta vários casais que assistem a um filme erótico: Ferrara continua a falar de cinema, de espectadores, e mostra-nos outras formas, mais subterrâneas, mas igualmente de partilha das imagens em movimento, em que se estabelece uma simetria entre as representações do cinema e o movimento dos corpos dos espectadores, que trocam beijos e carícias, atravessados por aquele fio de luz impura e transgressora. Aquelas imagens empurrarão Chris Penn (Chez, irmão do meio de Johnny) e uma rapariga jovem, que se lhe vai entregar, na celebração de um pacto com o diabo, ao abrigo da representação e subversão do mundo que o cinema também é.

Christopher Walken (Ray), que já fora King of New York (Ferrara, 1990), lidera a família e traz consigo, no bolso do casaco, a tradição da Sicília, sob a forma da bala com que matou o seu primeiro homem, aos 13 anos, ao lado do pai; Chez, herdou a demência do pai, e todos lhe predizem o mesmo destino suicidário. As mulheres e os seus corpos, as soberbas Annabella Sciorra e Isabella Rossellini, procuram conter, aplacar esta fúria dos homens, e atrasar a fatalidade, mas são mulheres talhadas para a tragédia, treinadas para cumprirem o pranto definitivo. Gallo é um sindicalista fervoroso, comunista olhado como anarquista, que se vai desligando dos irmãos e da comunidade, uma segunda geração vinda de Itália e que se instalou numa América de sucesso, onde tudo se negoceia. Esta utopia, que impossibilita cedências, colocará Johnny contra os irmãos, e a cinefilia dele é como um caminho conforme às actividades subversivas que lutam pelos direitos e garantias dos trabalhadores.

Ferrara, cineasta cristão, entrelaça estes mundos, como quem combina as crenças, com ícones cristãos que povoam os quartos e demais espaços, a rivalizarem com a luz branca da projecção, um jogo com o diabo com tantas demências e milhares de anos de brutalidade, que nem o cristianismo nem o cinema redimirão. “Diz-me a verdade, conforme Deus a vê”, é o desafio que Walken dirige ao assassino do irmão. Temos, então, uma polifonia entre a moral, a justiça e a ética das imagens e as actividades da comunidade, que defende para si uma conduta e honra próprias, mais do que fora da lei, acima da lei, constituindo, assim, a herança da máfia siciliana como uma das mais fortes representações, alternativa nos modos de vida, que o cinema impôs com as suas histórias, os seus códigos e significações.

Nas duas últimas sequências do filme, os irmãos juntam-se. Primeiro, um clima de festa e de diversão, abraços entre os homens atravessados por clarões de luz branca. Depois, a tragédia anunciada rebenta, associada ao alvoroço, a choros de mulheres de tal forma paroxísticos que o sincronismo entre a banda de som e as imagens ameaça ruir. Na corrente de emoções que nos atravessa e nos encosta à cadeira, voltamos a ouvir na nossa cabeça Gloomy Sunday cantado por Billie Holiday no velório e relembramo-nos do rosto de Gallo, quando saía de uma sala de cinema.


Vitor Ribeiro

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