
Como toda a gente sabe, a pandemia do coronavírus está a forçar à superfície contradições e injustiças que andam por aí há algum tempo mas que era muito mais fácil ignorar ou racionalizar quando o estado das coisas era simplesmente “um dia atrás do outro”. Ainda na mesma linha, está agora a oferecer opções criativas aos espectadores de cinema que querem ir além da sua dieta normal de estreias semanais de vulto, organizadas para parecerem importantes através de campanhas publicitárias de somas avultadas e atenção mediática a rodos. Muitas destas opções alternativas já existiam muito antes da pandemia. Mas agora que as estreias comerciais se tornaram raras, estão a aparecer outras ofertas cinematográficas – muitas delas gratuitas, outras cobrando admissão em diversas plataformas de streaming – e devemos tirar partido delas, analisando o que se tornou acessível. O que está a ser oferecido é uma parcela significativa do que resta da nossa história do cinema; o que podemos seleccionar desta ampla colheita e o modo como dela podemos fazer uso são questões que vale muito a pena contemplar.
E se passássemos as nossas horas vagas navegando atrás de filmes gratuitos acessíveis na Internet? As possibilidades são muito mais magnânimas do que podia supor-se. Só para começar, a Open Culture (em www.openculture.com/freemoviesonline) promete e cumpre “1150 Filmes Gratuitos Online: Grandes Clássicos, Filmes Indie, Noir, Westerns, etc.”, e mesmo isto só arranha a superfície.
O problema não é a insuficiência de filmes gratuitos, mas o excesso. Toda a série de concorrentes disponíveis via motores de busca no YouTube.com, ok.ru (uma variante russa do YouTube, de utilização menos fácil mas não menos copiosa), Uloz.to (uma página electrónica checa/eslovaca), archive.org, e inúmeros outros recursos – filmes facilmente descarregáveis em aplicações de conversão de ficheiros – é tão vertiginosa que uma pessoa precisa da orientação das listas para reduzir as opções. Mesmo que fiquemos apenas pela Open Culture, temos uma dúzia de filmes britânicos de Hitchcock à escolha, quatro longas-metragens de Andrei Tarkovski, sessenta filmes noir, vinte e seis westerns com John Wayne, e a maior parte das oitenta comédias de Charlie Chaplin. Por onde começar?
Uma das razões que explicam que a maioria dos espectadores se cinja às novas estreias dos grandes consórcios é o facto de uma pré-selecção limitada ser de longe mais fácil de navegar que uma avalanche. Empresas conexas à formação da norma canónica, instituições como os Óscares e listas de dez melhores filmes desempenham a mesma função. Em suma, ter uma agenda de visionamentos ajuda; encontrar e então seguir as nossas agendas de visionamento auto-formuladas pode ser mais estimulante e mais árduo do que seguir as pré-existentes. Tenho-me dedicado ao passatempo recente de caçar longas de Kira Muratova (1934-2018), uma excêntrica, talentosa, transgressiva e hilariante cineasta soviética de origem ucraniana – e por vezes descobrir as legendas inglesas em páginas como a www.opensubtitles.org.
E se os vossos gostos forem menos esotéricos que os meus, mas, como eu, gostarem ainda assim de ver filmes com legendas em inglês – mesmo no caso de filmes com diálogos em inglês – porque esta actividade combina os prazeres das idas ao cinema com os prazeres da leitura, ou porventura somente porque são duros de ouvido? Teoricamente, podem dedicar a vossa agenda à caça das longas de Marilyn Monroe e ao seu visionamento com legendas em inglês, se for essa a vossa fantasia.
Sejam quais forem as agendas que decidam adoptar e perseguir, não devem esperar que elas tenham a mesma aceitação ou popularidade do último Tarantino ou do último Spielberg. Como crítico de cinema, já não acredito que seja desejável ou sequer exequível chamar “bom” a qualquer filme a menos que possa acrescentar para quem e/ou para quê é ele bom. Umas pessoas vão ao cinema para esquecerem as suas vidas, e outras para enriquecerem as suas vidas. Como é que os mesmos filmes podem ser bons para ambas as facções? Umas pessoas gostam de legendas, outras detestam-nas, e há ainda outras que podem pegar-lhes ou largá-las.
Que sentido faz que os críticos proclamem que um tamanho ou forma única sirva para todos? O sentido de pertencer a uma multidão, imagino. Mas as possibilidades cinematográficas que estão agora ao nosso alcance sugerem um novo tipo de multidão – uma multidão de indivíduos únicos perseguindo e partilhando os seus próprios especiais interesses.
Jonathan Rosenbaum