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Sala de Projeção
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Do Rosa e do Negro

por Michel David · 18 de Maio, 2020

Tokyo Monogatari (Yasujiro Ozu, 1953)
Tokyo Monogatari (Yasujiro Ozu, 1953)

Fiz o meu baptismo de fogo cinéfilo no ambiente dos cineclubes, essa forma de educação popular que as jovens gerações terão de reinventar. E apropriei-me muito depressa do papel de animador, mesmo quando os meus conhecimentos de cinema eram ainda muito limitados. Mas falar da sala de cinema, é antes de mais isto, estar isolado no escuro mas saber que estamos no meio de um público que reage, individualmente e colectivamente, num silêncio “religioso”.

Antes da minha ida para Paris, o último filme que mostrei e debati foi “a diaba de collants cor-de-rosa” (Heller in Pink Tights – não conheço o título português[1]). Vale a pena dizer que, na época, a nossa ambição, que sabíamos disparatada, era ver tudo, e que a noção de obra-prima não tinha sentido, e que essa ambição passava pela experiência da emoção colectiva. Mais tarde, entrei no meio profissional.

Ozu era, em 1980, um cineasta cuja existência conhecíamos, mas cujos filmes não foram acessíveis antes de uma grande retrospectiva no festival de Locarno. Pascale Dauman, que dirigia uma empresa de distribuição, mostrou-me (na minha única experiência de espectador sozinho numa sala) Viagem a Tóquio. Era uma versão não legendada com uma sinopse de cinco linhas. Poder do cinema; evidentemente, não percebi o enredo, e menos ainda os diálogos, mas, na atenção requerida pela sala escura, onde não é possível nenhuma distracção nem vagabundagem do espírito, “compreendi” o filme e o que o cineasta queria transmitir-nos.

Em 1986, teve lugar o cinquentenário da Cinémathèque française; fui incumbido das manifestações ligadas ao acontecimento. Como em qualquer cinemateca, convidava-se regularmente um cineasta para que fosse apresentar um filme da sua escolha. Liguei a Jean-Luc Godard, que me disse que faria uma “história A/B do cinema”. A sua escolha incidiu numa quinzena de filmes da História do cinema, ficando o projeccionista obrigado a passar, sem transição e a cada cinco minutos, do “projector A” ao “projector B”, os primeiros cinco minutos de segunda bobine de cada um dos filmes escolhidos.

Fizemos um ensaio na sala do Palais de Chaillot. Éramos quatro na sala, eu, Godard, Serge Daney, Serge Toubiana.

A sessão pública foi um quase motim, em que o meu papel foi essencialmente recusar a entrada ao que todos os cinéfilos queriam ver.

E, tendo então desejado poder recomeçar a “experiência”, penso retrospectivamente que foi muito bem como foi, essa sessão única. A sala de cinema é também uma fábrica de recordações, e de fantasmas.


 Michel David


[1] Em português, o filme de George Cukor tem por título Agarrem Essa Loira (N.E.).

Leia a versão original em francês

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