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Filmes em tempos de corona

por Mark Rappaport · 19 de Maio, 2020

Psycho (Alfred Hitchcock, 1960)

Quando era miúdo, filmes em segundas ou terceiras reposições passavam sempre em double bills nos cinemas de bairro – o primeiro e principal filme era normalmente série A e o segundo um filme série B. Passavam em contínuo desde que o cinema abria até ao final do dia. Algumas vezes mostravam curtas de dez minutos e, se tivesses sorte, um desenho animado ou dois. As luzes nunca acendiam e podias permanecer o tempo que quisesses. A limpeza das salas era uma tarefa deixada para o final do dia ou para a manhã do dia seguinte.

André Breton, aficionado por filmes, ia ao cinema e por vezes saía 20 minutos depois. Era uma maneira de estimular a sua imaginação. Não tinha interesse noenredo ou nas personagens, mas assistir a meia hora ou assim de um filme sobre o qual não sabias nada permitia que inventasses a estória que o fragmento que viste te inspirava. O pequeno pedaço permitia-te sonhar um plot e motivações próprias ao invés de assistir a todo o filme, o que te sonegava a oportunidade de fazeres um filme teu.

Tudo mudou em 1960 quando Hitchcock realizou Psycho / Psico. Os anúncios todos gritavam: “Tem de ver este filme desde o início. Não revele o final!”, “Ninguém, MESMO NINGUÉM, será admitido na sala de cinema depois de começar cada sessão.” Mudou a maneira como as plateias americanas viam os filmes. As salas esvaziavam quando o filme terminava, e se querias ver o filme tinhas de consultar os jornais ou contactar a sala de cinema para saber o horário das sessões. Já não podias  entrar e sair à vontade. A culpa era de Hitchcock! Eras um prisioneiro da tirania destes tempos de partida, da tirania das salas de cinema. Não sei se isto era um sinal mais ou sinal menos para os exibidores.

Com a invenção do VHS, os padrões de exibição de filmes mudaram tremendamente os hábitos dos espectadores, mais uma vez. Podias começar um filme, podias parar o filme, podias rebobinar e assistir à cena outra vez. E outra vez, se escolhesses, podias responder a um telefonema e pôr o filme em “pausa”. Podias ir à cozinha e comer um lanche. Podias ir à casa de banho e não te preocupares com o que perdeste – porque não estavas a perder nada. O filme estava sob o teu controlo, não era o contrário. Os DVDs ampliaram a relação com muito melhor qualidade.

Depois, claro, vieram os blu-rays. No início, poucos títulos estavam disponíveis. Um amigo, no início da era dos blu-rays, perguntou-me se eu ia comprar um leitor blu-ray. Na altura, estavam apenas a lançar filmes muito populares dos estúdios. Disse-lhe que iria comprar um leitor blu-ray caso pusessem cá fora Slightly Scarlet / O Anjo Escarlate (1956). Não sei se o fizeram ou não, mas eu comprei um leitor blu-ray pouco depois disso. Na realidade, comprei o meu leitor blu-ray no mesmo dia em que o Príncipe William e Kate Middleton se casaram, não que isso fosse de grande interesse para mim, mas todos os monitores na loja tinham o casamento a passar nos seus ecrãs. Isso fixa a minha compra num quadro temporal muito específico, comprei um leitor blu-ray com um televisor grande. Quis comprar um com um ecrã ainda maior mas o meu companheiro bateu o pé. Ele não queria um ecrã gigante a tomar conta da sala de estar. Agora tenho muitos blu-rays de filmes que adoro. E agora eles estão a lançar filmes ainda mais obscuros que Slightly Scarlet.

Slightly Scarlet (Allan Dwan, 1956)

Recentemente, a Cinemateca Francesa organizou uma retrospetiva parcial dos filmes com Joan Crawford. Não sou especialmente fã de Joan Crawford mas existem alguns filmes com ela que penso serem ótimos – a maior parte de meados dos anos 40. Fui ver Possessed / Loucura de Amor (1947) e, adivinhem, o blu-ray parecia ter muito melhor qualidade e era mais divertido assistir ao filme no conforto da minha casa. Descobri que não precisava de pessoas à minha volta e do ecrã grande para ter a experiência de ir ao cinema. Vi suficientes filmes na minha vida para ser capaz de adaptar a versão pequeno ecrã  ao que originalmente se pretendia. Penso não estar sozinho nisto.

Em tempos tive uma empresa chamada Couch Potato Productions. Bem, penso que eu próprio sou um couch potato (viciado em televisão). E, além disso, apesar da contestação de muitos cinéfilos sobre os filmes serem projetados em DCP ao invés de nos seus formatos originais em 35 mm, eu aceito a versão DCP a qualquer altura, em qualquer sítio, em qualquer lugar. Elimina danos distrativos nos planos, manchas e detritos na película e a nevada de arranhões no final das bobines, especialmente nos filmes mais antigos que são projetados não em novas cópias mas nas que sobreviveram à passagem do tempo.

Apesar de estarem a fazer mais e mais blu-rays que atendem a espectadores como eu (difíceis de encontrar, é difícil ver filmes que caíram nas fendas da história), o seu público parece limitado e é-nos prometido que em breve eles vão enveredar pelo caminho dos VHS e vinil. Não duvido que isto seja verdade. Isto é o que o capitalismo faz melhor. Faz produtos que se destinam a tornarem-se obsoletos por forma a que tenhas de comprar a próxima versão que foi concebida para os substituir.

Agora qualquer pessoa pode passar filmes em streaming no seu IPhone e computador e sentir que não está a perder grande coisa. Escala, tamanho, qualidade de imagem, para não falar da participação do público são sonhos do passado. Por isso, os estúdios de Hollywood subiram a parada. Filmes com efeitos CGI que preenchem o quadro para a reação UAU!, filmes que claramente perdem muita informação quando não são vistos no grande ecrã. Mas acho que já ninguém se importa. Até eles, os espectadores anónimos, viram filmes suficientes nas suas vidas para compensarem a diferença entre o que está no ecrã e a aparência que as imagens de viam ter. Ou então talvez não queiram saber. Sabemos, estudo após estudo, que os filmes não geram a mesma magia em pessoas que estão nos seus vintes ou trintas da que ainda geram em pessoas décadas mais velhas. Além disso, existe muito mais estímulo áudio/vídeo para as distrair – e os filmes estão relegados para um estatuto subsidiário. Quem alguma vez imaginou que poderiam terminar assim?

Voltando à tirania dos tempos de partida – existem filmes que eu absolutamente não irei ver se são de três horas ou mais. Partem o dia e/ou destroem o dia de uma maneira que eu não vou permitir. Vi Sátántangó / “O Tango de Satã” (1994) numa sessão de imprensa quando foi mostrado no New York Film Festival às 9 horas da manhã. Lembro-me de adormecer a dado ponto e lembrar-me disso mais claramente que o filme, apesar de me lembrar distintamente da rapariga a brincar e a torturar o seu gato. Foi exibido nos cinemas em Paris há poucos anos mas eu recusei abdicar do dia para rever um filme de sete horas. Mais recentemente, foi mostrado em três diferentes partes. Fui ver os dois primeiros episódios em diferentes dias. Mostraram cada parte à mesma hora em  cada dia. Quando o único horário para ver a Parte Três, que tinha três horas, era às 8h40 da tarde, não tive vontade de ir. Agradeci ao distribuidor por encontrar uma maneira de fazer mais dinheiro com o mesmo filme, ainda que esteja disposto a apostar que havia menos gente a assistir à terceira parte que a que assistiu às primeiras duas partes. Estava a adiar a minha viagem até ao cinema e depois o confinamento do coronavírus começou. Pronto, isso resolveu a coisa! Por favor, não me convidem para o relançamento das versões 4K de Berlin Alexanderplatz (1980)(13 horas) ou Out 1 – Noli Me Tangere (1971)(12 horas).

Falando do coronavírus e do confinamento, tenho de admitir algo um pouco embaraçoso sobre mim mesmo e espero que não menciones isto a outras pessoas. Quando eu e o meu companheiro nos sentamos para jantar todas as noites, assistimos a meia hora ou por vezes 40 minutos de um filme. Se o filme realmente for cativante, assistimos a uma hora. Com todos os DVDs e blu-rays que tenho, há sempre qualquer coisa. Mais filmes recentes que gravei da televisão. E agora há uma coisa nova com a TV por cabo, pelo menos aqui em França. Cada canal, se tiveres uma subscrição por cabo, tem uma secção de replay que põe alguns dos seus filmes disponíveis para visionamento a qualquer altura – além dos tempos programados de transmissão.

Dado que existem cerca de 12 canais dedicados à exibição ininterrupta de filmes que são mostrados além da programação regular, podes ter a certeza que haverá sempre alguma coisa de interesse para ver. Agora que estamos em confinamento, assistimos a filme de cabo a rabo – Dog Day Afternoon / Um Dia de Cão (1975), Bell, Book and Candle / Sortilégio de Amor (1958), Moonfleet / O Tesouro do Barba Ruiva (1955), Anatomy of a Murder / Anatomia de Um Crime (1959), nas últimas duas semanas ou assim. Se o confinamento continuar para sempre (dá todos os sinais disso ou de que regressára para um novo compromisso algures no futuro próximo), haverá ainda muito para ver. Eu faço toda a programação.

Por falar nisso, se o confinamento continuar por muito mais tempo, as cadeias de distribuição vão abrir falência e salas independentes certamente não sobreviverão. Quantos meses de renda consegues pagar quando não estás a receber nada? E, se e quando reabrirem, quem está disposto a ir ao cinema quando te podes sentar em frente ou atrás de alguém que está infetado mas não o sabe? Será que vale o risco assistir a In a Lonely Place / Matar ou Não Matar (1950)pela milésima vez? Bem, talvez, mas duvido. Penso que outros duvidarão, também. Roleta russa no cinema! E, claro, prolongando-se a pandemia, é certo que haverá escassez do produto, porque fazer filmes implica demasiada proximidade entre as pessoas.

O resultado do coronavírus, se te mantiveres a par das notícias (espera-se que 60 a 70% da população mundial estará infetada), vai mudar a vida tal como a conhecemos –  para filmes, teatro, desporto, concertos, museus (provavelmente todos os eventos culturais), qualquer situação que requeira um grande número de pessoas. Neste momento, não existe margem para dúvida no mundo que a vida depois do coronavírus será muitíssimo diferente do que era antes do coronavírus. E nem sequer conseguimos imaginar como será. Centenas de milhares de mortos. Uma depressão mundial diferente de tudo o que vimos antes. Não parecerá a altura certa para gastar dinheiro em versões 4K de, digamos, Slightly Scarlet. Ou sequer para pensar nisso. Face à calamidade que já está aí, parece que há coisas mais importantes em que pensar e que precisam de ser feitas.

Toda gente anda há anos a falar da Morte do Cinema. Mas quem imaginava que terminasse assim? Terminar com um gemido e não um estrondo. Lembra-te de todos os filmes de crime que viste, a pessoa que tinha mais a ganhar com a morte de uma das personagens era sempre a primeira suspeita de ter cometido o crime. E mais tarde descobrimos que apesar de haver uma motivação, não havia provas. Entretanto, esquece todas essas mal amanhadas teorias da conspiração. Não, Bill Gates não inventou o vírus. Nem o fez George Soros. Assim, parece-me que o coronavírus não veio de um laboratório na China ou mesmo do mercado de peixe em Wuhan, mas foi desenvolvido pela Netflix e Amazon. Parece-me que eles irão lucrar mais e, por isso, deverão ser os mais suspeitos. Mas, para esclarecer as coisas, ninguém podia imaginar um cenário como aquele que rapidamente se está a desenrolar e a derrubar tudo no mundo. Enfim, é uma maneira muito foleira e própria da ficção científica de terminar com os filmes (e muitas outras coisas, também), que mesmo quando tudo foi dito e feito, tiveram uma maravilhosa e rica vida. Iremos sentir tremendamente a sua falta…

Mark Rappaport

Leia a versão original em inglês

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