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Fórmulas de magia

por David Pinheiro Vicente · 19 de Junho, 2020
The Suits (Tina Barney, 1977)

A minha mãe costumava brincar aos cowboys e índios e, sendo a única rapariga, era sempre a mulher do saloon. Ela contou-me que levava para o quintal os copos das bonecas que enchia de água e servia aos rapazes durante a pausa das suas disputas, que o irmão mais velho era sempre o xerife, que os vizinhos eram sempre os índios e que o rapaz gago era sempre o irmão gordo do Bonanza. A imagem de uma rapariga sozinha, rodeada de copos de plástico cheios de água a servirem de copos de whiskey, à espera de vários rapazes que usam o polegar e o dedo indicador como se fossem uma Colt six-shooter e que levantam terra com botas texanas imaginadas suscita várias interpretações quanto a um possível significado: os “bons” e os “maus” como a dualidade que define o mundo da criança, e por isso do homem; papéis e tensões entre os sexos aprendidos desde o tempo em que as bonecas têm loiça própria; dominar o outro como a brincadeira preferida por defeito ou uma comunidade transformada para sempre pela base americana a 4 km que lhe permite sintonizar o The Carol Burnett Show e música country. Todas estão certas. Quanto a mim, escolho encontrar o significado desta história no quanto a nossa vida muda com o cinema.

“Maybe he saw someone doing it in a movie”, explica Tina Barney sobre uma fotografia que tirou de um rapaz que é demasiado novo para ter a mão no bolso das calças de fato, pelo menos de forma tão solene. Quando imagino os gestos que aquela criança que é agora a minha mãe imitava das mulheres que via no grande ecrã, imagino gestos de solidão e experiência, glamour arruinado e nuvens de fumo, tão distantes da sua feminilidade adulta e de uma abstração calculada que só as crianças e as estrelas de cinema conseguem tornar real. Só no cinema e na infância têm as pessoas gestos tão belos, como se fossem sempre fórmulas de magia.

Outra história que ainda ecoa nos meus ouvidos é anterior e retirada da juventude da minha avó materna, sobre quando foi, acompanhada da família, a uma projeção de cinema ao ar livre durante o verão e em que, supostamente, o meu bisavó se levantou e bateu com os pés no chão quando viram todos em conjunto uma perna sensual, de uma atriz que a minha avó não chegou a perceber quem era, subir lentamente de trás de uma porta. A família foi obrigada a levantar-se e a regressar a casa. Quando penso nesta história, quando re-projeto o acontecimento que não vivi na minha cabeça, gosto de pensar no ar húmido do verão insular e no aroma que os plátanos deixam nas praças com o calor, misturado com o suor, e imagino que talvez os jovens e as crianças estivessem sentados mais à frente e que talvez uma das raparigas tivesse um vestido novo, que a minha avó era adolescente e ingénua e que no meio disso tudo apareceu aquela perna anónima que representava as abstrações que o cinema tornava reais — o sexo, o pecado, o dinheiro. Gosto de pensar nos significados diferentes que aquele aceno de uma perna teve no íntimo de cada criança que o viu e que o viram todas ao mesmo tempo sobre o aroma dos mesmos plátanos e que apesar de vermos os mesmos filmes várias vezes nunca é igual à primeira vez, nunca tão poderoso, nunca tão vibrante, nunca com a mesma convicção como quando fingimos esquecer de que se trata de uma grande mentira, quando ignoramos o segredo porque sentimos que o que está a acontecer à frente dos nossos olhos está a acontecer para nós e que se protegermos esse segredo com o cuidado suficiente ser-nos-á revelada qualquer verdade preciosa sobre a beleza e a natureza humana.

Quanto a primeiras vezes, a primeira vez que fui à Cinemateca foi com dois amigos que ainda tinha do liceu e que não gostavam de filmes a preto e branco. O filme era o The Bad and the Beautiful, eu estava no primeiro ano da Escola de Cinema, nunca tinha visto uma projeção de 35 mm e não sabia quem era o Vincente Minnelli. O filme começa com um telefone a tocar e a chamada é para um realizador que está montado numa grua gigantesca e que percorre um grande soundstage com o olho na câmara, acompanhado de técnicos que o fazem chegar a uma rapariga deitada com um vestido brilhante. Ele está a ensaiar e elogia a rapariga, corrigindo meticulosamente a posição delicada da sua mão sobre o pescoço, e com isso o seu dia de trabalho é sintetizado de uma forma tão maravilhosa no que Jacques Rivette soube explicar melhor do que eu quando pediu “que um dos fins do cinema [fosse] esta investigação deliciosa do gesto”.

Poderia escrever que ver este gesto e este filme naquela altura em particular, um filme sobre o cinema clássico e sobre, entre outras coisas, fazer cinema, foi comovente, e seria verdade, mas essa sempre me pareceu a parte menos interessante da história. Não me lembro bem de mais detalhes daquela noite e é mais difícil inventar detalhes do nosso próprio passado do que das memórias dos outros, pelo menos mais enfadonho. Mas quero dizer mais duas coisas, as que me levaram à associação das histórias que descrevi acima, com alguma certeza: que torço mais facilmente pela solitária mulher do saloon do que pelo xerife (por razões óbvias mas talvez também por ser o papel mais provável a darem-me em brincadeiras de criança) e que acredito que ver um filme numa sala de cinema é uma celebração do cinema por si só. É um ritual, e o escuro e a solidão sobre os quais tanto se escreveu, e se continuará a escrever, são um privilégio, o que sempre me pareceu ser uma das verdadeiras promessas do homem. E todos os que lá estão, sentados na sala escura ou no escritório, honram essa promessa.


David Pinheiro Vicente
2020

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