
a nudez é o único bem que possuímos neste mundo — João César Monteiro
Num texto muito belo em que João César Monteiro responde à questão porque é que filma? — «Os soluços lentos dos sons do Outono…[1]», traduzido assim por Alberto Vaz da Silva o título original francês, «Les sanglots longs des violons de l’automne…», os três primeiros versos do poema de Verlaine —, aí começa ele por dizer que tem de pintar o tecto novamente de branco (está deitado, olha o tecto, e depois olha a sua mão direita, que podia ser «a mão de um músico ou de um ladrão»)… Olhar atentamente a mão, esse repetido gesto da primeira infância — a mão enquanto instrumento autónomo, que pode ser autónomo, que parece autónomo — é a mão que faz (a mão do artista, desde logo), e é por ela que se é. Ora, escreve João César Monteiro, trata-se de uma mão que «já não é letrada». Quer isto dizer que não passa por ela a poesia, pela mão que escreve? Não passa nele dessa maneira — não esquecer que estamos, à data deste texto, nel mezzo del cammin, dois anos depois de Recordações da Casa Amarela. Não passará pois nele dessa maneira — ele que não suportava mesmo nada que lhe dissessem que devia escrever, porque para escrever tinha imenso jeito. A mão irá fazer doutra maneira…
João César Monteiro faleceu pouco depois da conclusão de Vai e Vem (2003). Podemos dizer que faleceu no cinema e em filme, e que aí assim passou a viver. Que farei eu com esta espada? (1975) — filme extraordinário, e que surge depois de Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), o seu primeiro, e de dois outros filmes, talvez não inteiramente concluídos, Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970) e Fragmentos de um filme-esmola (1972).
Que farei eu com esta espada? desenvolve uma dialéctica inesperada, que não pode ser dissolvida num esquema simplista de sentido, entre o que mostra do tempo presente (as manifestações, a cidade, as suas pessoas, os marinheiros estrangeiros, e o povo português, no trabalho, com as suas lendas) e o que existe no cinema; sobretudo, temos a situação documentada, a presença de um porta-aviões da NATO estacionado no rio Tejo, frente ao Cais das Colunas, e as imagens da chegada do barco pestífero que traz Nosferatu à cidade, do filme de Murnau. Digamos que é a partir do cinema que João César Monteiro se dirige ao mundo, mostrando com esse gesto uma equivalência entre o cinema e o mundo — ou pelo menos uma possibilidade de trabalho, dessa maneira. Que farei eu com esta espada?, verso do poema de Fernando Pessoa que evoca o Conde D. Henrique no livro «Mensagem», corresponde ao questionamento que o realizador faz à sua arte — e que o espectador fará a si próprio[2]. Que farei eu com esta espada? Que farei eu com esta vida? Que farei eu de mim? São as perguntas que se fazem nel mezzo del cammin, que é onde estamos agora, que é onde estamos sempre. O eu do título do filme é em primeiro lugar o do autor, certo, mas eu não é eu — trata-se também de um lugar aberto a quem queira e possa fazer dessa pergunta sua pergunta também. Mas a espada é o cinema, assim é que é, isso é que é preciso dizer. Era aí que queríamos chegar.
Edmundo Cordeiro
[1] João César Monteiro, «Os soluços lentos dos sons do Outono», em resposta à pergunta «Porque é que filma?» (em 1991), que veio a ser publicada mais tarde também na revista Trafic, nº 54, Verão 2004, Paris — João Nicolau org., João César Monteiro, Catálogo, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2005, pp. 20-27.
[2] Refira-se o texto de Fausto Cruchinho, «Que farei eu com esta espada?», in O Cinema Português através dos seus filmes, Carolin Overhoff Ferreira org., Edições 70, Lisboa, 2014, pp. 141-146, onde o autor acentua no final a ligação da interrogação-título do filme ao verso pessoano que lhe dá origem.