
Escrevo este texto a 26 de Maio, com as notícias do recomeço da actividade de algumas salas lisboetas para o início do mês seguinte. A última vez que estive numa sala de cinema foi a 7 de Março, na Cinemateca. O título para o texto fui buscar às palavras do historiador de cinema, ensaísta e realizador francês, Jean-Baptiste Thoret, cuja entrevista ao suplemento cultural do Público, a 17 de Abril último, foi a peça jornalística sobre cinema mais importante que li em anos. A frase citada está incompleta, Thoret afirma que “O desejo da sala é um desejo de cinema, e não o inverso.” A proposição só é verdadeira quando o destino é a sala de cinema. E tão mais verdadeira para mim quanto as dezenas de filmes que tenho visto em casa nestes cerca de dois meses, não apagaram a vontade de voltar a ver cinema em sala.

Farei mais duas citações da longa e intensamente reflectida troca de e-mails entre o crítico Vasco Câmara e Jean-Baptiste Thoret, passando de imediato à distinção fundamental entre qualidades da fruição das imagens em movimento que não podem ser tidas como idênticas. “Na realidade, a Netflix é o sintoma de uma época, a consequência lógica de uma evolução de espectadores que se desenrola há vários anos. As plataformas apenas actualizam um estado de coisas: o desaparecimento do cinema como espaço comum, o pouco interesse das novas gerações pelo cinema em favor de blockbusters insípidos e sobretudo o advento das séries televisivas como nova prática maioritária ao ponto de ocuparem na pop culture o lugar que há 30 anos era do cinema. E depois o tempo do consumidor não é o do espectador. A relação inverteu-se: o espectador concede o seu tempo ao de uma obra, dobra-se à sua temporalidade, ao seu ritmo, enquanto o consumidor impõe o seu tempo a tudo o que olha [negrito meu]. E é um tempo sempre mais segmentado, um olhar sempre mais superficial que desliza sobre as imagens como se fizesse surf. O consumidor não age por sede de cinema, mas por uma necessidade bulímica de imagens. A Netflix congratulou-se pelo facto de a maioria das pessoas que viram O Irlandês [The Irishman (2019), de Martin Scorsese, 3h 29min de duração] terem chegado a 70% do filme! É delirante.”
Fui um dos felizes contemplados com a possibilidade de assistir a The Irishman no grande ecrã. Tratou-se de um visionamento para a imprensa. A ocasião não voltou a proporcionar-se para outros títulos cuja produção tenha sido viabilizada pela mesma plataforma de streaming. Mas o último filme que vi em sala foi Liberté (2019) de Albert Serra, e o que me pergunto é qual seria em média a percentagem atingida das 2h 12min que dura o filme, resultante da consulta às pessoas que fossem vê-lo por meio de um serviço de VOD. Este título de Serra traduz literalmente a experiência de ver um filme como o apelo do desejo de ver cinema, que só acontece realmente e fantasmagoricamente também, numa sala de cinema. Não éramos mais de duas centenas os que ali estávamos, perdidos a farejar por entre as sombras daquele bosque de eucaliptos, onde tinha lugar um ritual de delícias e de sevícias. Foi um repasto de cinema propriamente dito, quer para os apenas curiosos, quer para os mais cinéfilos. Um filme que nos faz acreditar no futuro da sétima arte, a que aludem as últimas palavras de Thoret que usarei para fechar o texto. “Não devemos temer, nós, os cinéfilos amorosos do cinema, a Netflix. As plataformas tentaram seduzir-nos, produzindo Scorsese ou os Safdie, mas não se dirigem a nós. O que é preciso é estar alerta, não ceder em relação à concepção alta que temos de cinema e fazer com que este volte a conquistar o seu território.”
O que é preciso é alimentar o desejo de cinema regressando às salas logo que possível, e enfrentando na medida do possível a estranheza das regulamentações impostas.
Ricardo Gross