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Reconstituição de uma última ida ao cinema

por Margarida Assis · 18 de Junho, 2020
Filmoteca da Catalunya, foto: Núria Vallverdú

No dia 8 de Março de 2020, aí às três da tarde, saiu de casa e dirigiu-se para lá, de bicicleta. O filme, Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera, de Kim Ki-duk, só começava às quatro e meia, mas antes encontrar-se-ia com um amigo de longa data que não vira nos últimos cinco ou seis anos. Não conseguindo lugar para estacionar a bicicleta no ponto habitual, e sabendo que o amigo já estaria à sua espera, no bar ao lado do cinema, terá acelerado por entre os inúmeros transeuntes de domingo à tarde, fazendo soar a campainha buliçosamente, já com raiva antecipada da falta de lugar também no outro estacionamento: quanto mais tarde chegasse ao pé do amigo, mais deselegante seria despedir-se dele a horas de não perder o filme.

Para seu inesperado gáudio, porém, o outro estacionamento tinha dois ou três lugares disponíveis. Atravessou a rua, e terá avistado o amigo na esplanada. Antes de se dirigir a ele, terá entrado sorrateiramente pela porta lateral do cinema e comprado o seu bilhete, pensando talvez pousá-lo num espaço livre da mesa, prendendo por baixo de um pires a ponta do título, não a do horário, para depois poder dizer “ah, que horas são? Já me ia esquecendo, que disparate, não queria nada ter que ir embora, mas”.

Terá sido mais fácil do que isso. O amigo, cujo plano inicial era ficar na cidade até ao dia seguinte, teve que antecipar o seu regresso a Itália, prestes a fechar por completo as suas fronteiras, e tinha cerca de duas hora para estar no aeroporto.

Ter-se-ão abraçado à despedida – não sabiam quando se voltariam a ver, e, mais urgente, não sabiam por quanto mais tempo se poderia abraçar.

A sessão foi na sala pequena, o que é sempre chato, porque é uma correria para conseguir um bom lugar. Como já tinha corrido por um lugar naquele dia, e pensando que é muito pior do que uma cadeira no flanco a inabalável vontade de fazer chichi a partir da meia hora de filme, terá optado por ir à casa-de-banho antes. Ao seu lado, ter-se-á sentado um homem com hálito de cinzeiro podre, o que, sendo preferível a alguém com um casaco de poliéster e bichos carpinteiros, não deixa de ser uma adversidade. Perde-se, durante alguns instantes, do filme para considerar se é também por isso que os lugares do meio são todos ocupados mais rapidamente, não só pela não obliquidade da visão, mas também porque os espectadores mais repelentes se concentram nas cadeiras periféricas. Rapidamente se desfaz dessa ideia absurda: tanta vez se sentou ao seu lado, na sala grande, onde consegue sempre um lugar central, algum imbecil…

Durante toda a sessão não lhe terá ocorrido, nem por um segundo, que aquela poderia ser a sua última ida ao cinema (dirão que, de facto, teria sido um pensamento dramático, mas o que é certo é que até hoje, dia 8 de Junho, três exactos meses depois, não houve outra).

E por falar em pensamento dramático, quantas pessoas terão tido esse desprazer na vida, de saber que aquele é o último filme que vão ver, que aquela é a última vez que se sentam à espera que se apague a luz e se acenda o projector, sem a menor preocupação, entregando-se docemente e confiando, num optimismo supremo, nas mãos, nos olhos e nos tempos daqueles que apagarão as luzes, fecharão as portas, ajustarão a máscara da tela…?

Enfim, nada disso lhe terá passado pela cabeça. Terá gostado do filme. De pouco mais se lembra, ou não quer contar. Diz ter saudades do fim do filme, dos olhares à saída, da vontade de chegar a casa, do regresso a casa, já sem raiva dos transeuntes.





Margarida Assis

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