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Sala de Projeção
Textos

Um mundo partilhado

por Joana Frazão · 24 de Junho, 2020
Tsai Ming-liang
Goodbye, Dragonn Inn (Tsai Ming-liang, 2003)

1.

No cinema, estamos separados do ecrã. Ao contrário do que acontece magicamente em The Purple Rose of Cairo (Woody Allen, 1985) ou Last Action Hero (John McTiernan, 1993), se o atravessássemos não poderíamos aceder ao que lá é projectado, tocar e cheirar os objectos, falar com os actores, mudar o curso dos acontecimentos – só conseguiríamos danificar a tela e interromper a projecção. Mas a capacidade de mergulhar metaforicamente dentro de um filme não é impedida pela distância física, real, e a caixa negra da sala de cinema é comummente descrita como um espaço imersivo, que envolve o espectador.

Vários factores contribuem para esta sensação: o tamanho do ecrã e a escala das figuras humanas aí projectadas que se tornam literalmente bigger than life, os sistemas de som surround, num volume mais alto que na vida real, ambos produzindo um efeito de aumento, inundando os sentidos. Se nos sentarmos nas primeiras filas, não temos sequer a noção dos limites do enquadramento da projecção, deixa de haver um exterior, estamos como que dentro do ecrã. É muito diferente vermos um filme num computador, na televisão ou no tablet, rodeados da nossa vida quotidiana, potencialmente interrompidos a qualquer minuto; o dispositivo ritualizado da sala de cinema tem a capacidade espantosa de, no tempo que dura um filme, captar a nossa atenção exclusiva, como se não fosse possível desviar o olhar.

No escuro e sem objectos familiares, tarefas mundanas ou conversas que nos distraiam, estamos isolados do mundo lá fora por uma porta ou cortina espessa. O espectador de cinema é também convidado a uma espécie de esquecimento do próprio corpo: imóvel, concentrado apenas na visão e na audição, sentado ou reclinado na sua poltrona (numa posição que, com a ajuda do ambiente de penumbra, é propícia ao sono e ao sonho). A escuridão também ajuda a um isolamento face aos outros espectadores. Somos absorvidos pelos acontecimentos que se desenrolam na tela; por duas horas, esquecemos as obrigações e problemas da vida de todos os dias: a sala de cinema como lugar de evasão, de perda de si, em que o real é substituído por um outro espaço e tempo imaginários. Prova disso é o choque que sofremos quando as luzes se acendem e somos obrigados a sair para o exterior.

No pequeno texto «En sortant du cinéma» (1975), Roland Barthes abre com uma descrição do estado mole e sonolento, como o de quem sai de uma hipnose, do espectador depois do filme.  Fala de um ficar colado à representação, que significa deixar-se levar pelo logro ilusionista da imagem cinematográfica, mas também tem o sentido mais literal de colar o nariz ao ecrã, desejo de anular qualquer afastamento, como se pudéssemos entrar no filme. O esforço por entender o fascínio da experiência da sala de cinema passa por termos que expressam proximidade e distância, e Barthes conclui o texto propondo uma outra maneira de ir ao cinema, que escapa quer à sideração narcísica da identificação com o ecrã, quer ao distanciamento crítico de inspiração brechtiana: deixando-se fascinar duas vezes, pela imagem e pelo que a rodeia ou excede – «o grão do som, o escuro, a massa obscura dos outros corpos, os raios de luz, a entrada, a saída» –, ficando hipnotizado por uma distância que não é intelectual mas sim amorosa, erotizada.

2.

Goodbye, Dragon Inn (2003), de Tsai Ming-liang, parece realizado sob a égide de um fascínio – amoroso e melancólico – tanto pela imagem cinematográfica como por tudo o que a rodeia numa projecção em sala. O filme decorre inteiramente num grande cinema decadente nos arredores de Taipei. Um cartaz à porta, que só se vê no fim, anuncia o seu fecho temporário, eufemismo para definitivo; o final de uma era. Só que o «adeus» do título internacional não é à sala de cinema, mas ao filme que está a ser exibido, e cuja projecção se vai desenrolando a par e passo com o filme de Tsai: Dragon Inn, um clássico de artes marciais realizado em 1967, por King Hu. E dois dos pouquíssimos espectadores da sessão, dois homens de meia-idade, vêm-se despedir do filme de uma maneira muito especial, percebemos mais tarde: eles são Miao Tien, com quem Tsai trabalha regularmente, e Chen Shih. Ambos foram actores do Dragon Inn da década de 60, e agora assistem às suas façanhas de juventude projectadas na tela.

Falou-se acima da sala de cinema como interrupção do quotidiano. Apesar de tentadora, esta ideia também é simplista, e Goodbye, Dragon Inn desmancha as oposições demasiado arrumadas, mostrando uma permeabilidade entre cinema e vida, reflectindo sobre a distância entre o ecrã e o mundo.

Por um lado, há um jogo ou diálogo entre o que se desenrola na tela e na sala. Como explica Tsai Ming-Liang numa entrevista de 2004 à Reverse Shot: «Portanto na cena em que Chen Shiang-chyi e a espadachim partilham um olhar mútuo, estou a tentar mostrar que os filmes podem servir como uma força mutuamente encorajadora. Neste caso, instando Chen Shiang-chyi a continuar. Ela tem uma tarefa difícil – percorrer o longo corredor e entregar o pão. A personagem japonesa no meu filme está numa demanda. Vai entrar num espaço desconhecido cheio de perigos possíveis, tal como os espadachins. E os dois actores mais velhos, Chen Shih e Miao Tien, que aparecem em ambos os filmes, estão numa posição muito interessante. São ambos observadores objectivos, mas estão a ser observados.»

Por outro lado, Tsai figura uma situação-cinema em que os acontecimentos e as pessoas presentes na sessão competem com o que decorre no ecrã pela atenção de um espectador em particular, o turista japonês que entra sem pagar no cinema, distraindo-o da distracção: um par de raparigas que remexem um saco de comida e emitem ruídos desagradáveis; o homem na fila de trás que estende os pés descalços mesmo ao lado da cara dele; o momento de reconhecimento ou tentativa de engate de Chen Shih por parte do japonês, que vai sentar-se ao seu lado; a mulher de batom que deixa cair o sapato. Afinal, os espectadores de cinema não são ilhas.

Esta personagem do japonês vai circulando por várias cadeiras da sala, e também pelo resto do edifício do cinema, por onde também acompanhamos o projeccionista (Lee Kang-sheng) e a rapariga da bilheteira/gerente, que é coxa (Chen Shiang-chyi). E vamos sentindo, numa relação não só visual mas física, que tem a ver com a duração, que os corredores e escadas, o armazém, a bilheteira, as casas de banho, a cabine de projecção, o espaço por trás do ecrã, tudo isso faz parte não só daquele cinema em Taipei, mas também do próprio cinema, enquanto experiência, enquanto história.

Goodbye, Dragon Inn é claramente um filme para ser visto em sala, e não só pelas razões habituais em Tsai Ming-liang (a duração longa dos planos, o cuidado com a luz, a composição em plano geral). É que está pensado para acontecer no ecrã (onde os acontecimentos estão fixados) e também na sala de cinema (onde os acontecimentos são imprevisíveis). Quando o vemos projectado, ganha-se por vezes uma sensação de contiguidade entre os dois espaços, como se as filas de cadeiras do cinema de Taipeiprolongassem as nossas, como se pudéssemos encontrar uma daquelas personagens à saída: não se trata tanto de mise-en-abîme como de derreter as costuras do ecrã, criando um mundo partilhado. E quase no final, quando a câmara é colocada junto à tela, virada para a plateia, num longuíssimo plano em que Chen Shiang-chyi limpa a sala já vazia, há um efeito de espelho, como se aquele fosse o futuro da sala onde estamos – quando o filme acabar, quando o cinema acabar.





Joana Frazão

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