
Lola (Jacques Demy, 1961)
Nasci em Nantes, uma dessas cidades celebradas pelo cinema. Quando estava na Cinémathèque française, convidei muitas vezes Jacques Demy; e tive de apresentar Une chambre en ville, em que a essência da cidade, a sua alma profunda eram a matéria do filme.
Demy nasceu em Pontchâteau, a cerca de 50 quilómetros de Nantes, na orla de uma região, a Brière, feita de pântanos, canais, turfas, com uma organização socializada das terras. Os meus avós dedicavam-se ao mesmo ofício do pai de Jacques, numa aldeiazinha vizinha; conheciam-se bem. O meu conhecimento de Jacques Demy vem portanto de longe, de muito longe do cinema. Não vou dizer que fosse amigo ou íntimo dele, foram as circunstâncias que fizeram com que nos cruzássemos e que, mais tarde, nos reencontrássemos.
Os meus quinze anos. Saio do liceu Jules Verne e dirijo-me a um sítio de que gosto, a Passage Pommeraye, um cúmulo do kitsch (havia uma loja de “partidas e folias” e algumas outras originalidades). E, por puro acaso, dou por mim nas filmagens da “passagem” de Lola (de que não conhecia nem o título nem a história, claro está). Mas vejo Demy que, sem hesitar, me recruta como figurante.
Eis-me então uns passos acima do plateau central da “passagem”.
Não posso dizer que a lembrança desse meio-dia de rodagem me tenha deixado uma recordação imensa.
Fui ver o filme ao Katorza. E fez-se magia. Mergulhei no filme, senti a experiência do ambiente no mais fundo de mim. E depois de ter saído, dei-me conta de que não me tinha visto. Tinha-me esquecido. Na altura o “cinema permanente” ainda existia; voltei na sessão seguinte com a firme intenção de me ver. Narcisismo para que te queremos…
Cruel decepção. O (o, não os) plano em que apareço está enquadrado de tal maneira que de mim só se vêem o braço, as pernas e os pés. Não há portanto quem me reconheça, tirando eu próprio. O leitor pode mesmo convencer-se que inventei ou sonhei. Naquela idade, não era aí que estava. A minha carreira de actor ficou por aí. É possível fazê-lo mais gloriosamente, mas ainda assim não é um filme qualquer.
Para dizer a verdade, apareço uma única outra vez num filme, e dessa vez em carne e osso, numa sequência inteira. Produzi um filme de um óptimo desenhador e escritor francês, Frédéric Pajak, En mémoire du monde. Uma das cenas é filmada em minha casa. Trata-se de um “jantar de parvos”. Sou um dos parvos.
E disse a mim mesmo que o meu lugar não era à frente da câmara; conheço demasiado bem o poder dessa ferramenta; ser “do ofício” nunca foi de fiar, e ainda bem; mas “fazer de actor” continua a ser para mim um mistério.
Michel David