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Sala de Projeção
Textos

Uma mãe, um filho, uma sala de cinema

por Sérgio Alpendre · 18 de Junho, 2020
Raging Bull (Martin Scorsese, 1980)

Embora minha mãe adore cinema e sempre gostasse de me levar aos filmes ou comentá-los comigo, a mãe do título não é a minha, assim como o filho não sou eu. Falarei de uma mãe anônima, que nunca havia visto e nunca mais vi. Uma mãe e um filho que me propiciaram uma experiência única.

E são dessas coisas que só acontecem numa sala de cinema. Ou raramente acontecem numa sala de cinema. Mas aconteceu comigo. Talvez eu estivesse ali numa posição privilegiada.

Estava eu louco para que O Touro Indomável (em Portugal, O Touro Enraivecido) começasse na nova sala de cinema que abria no centro de São Paulo, na primeira metade dos anos 1990 (quando muitas grandes histórias em sala me aconteceram). Essa sala, pois bem, inaugurava com alguns clássicos em 35 mm. Era a revisão de um dos grandes filmes de Martin Scorsese.

Eis que percebo sentar-se, logo atrás de mim, uma mãe, com um menino de entre oito e dez anos. A lembrança é a de um menino parecido com o menino que eu era, mas posso ter sido traído pela memória.

Como todo antissocial, senti um calafrio e pensei que a experiência seria bastante prejudicada. Pensei em mudar de lugar, mas estava com vergonha de mostrar perturbação. Melhor esperar acontecer e, se for o caso, procurar um outro lugar para acompanhar o restante da sessão.

Começa a projeção. E a mãe, como eu temia (menos pela mãe do que pela criança), se pôs a falar. O tom da voz, contudo, não incomodava, e aos poucos tive a curiosidade de perceber melhor o que ela falava, naquele tom entre o censurado e o envergonhado.

Pois o que ouvi foi uma aula de cinema transmitida de uma cinéfila para seu filho pequeno. Ela falou da opção pelo preto e branco, uma opção estética, argumentando que na época já se faziam filmes coloridos. Falou da câmera lenta, da violência, do sangue que espirra.

Foi como uma faixa de comentário em DVD, numa época em que DVDs e faixas de comentários estavam longe de nosso horizonte. O teor da comunicação foi sempre didático, e o tom foi perfeito. Fosse sussurrado, incomodaria. Fosse um pouco mais alto, também. Essa mãe conseguiu o ponto em que sua voz não interferia no filme. Um milagre.

Ao final da sessão, pensei em agradecê-la pela possibilidade de ter presenciado um compartilhamento tão belo da experiência cinematográfica. Como sou tímido, nem olhar para trás eu olhei. Nem para ver se a conhecia, mesmo de vista, talvez de alguma fila de cinema.

Espero que ela esteja bem. Que continue cinéfila e continue amando o conhecimento e o compartilhamento das coisas. E que seu filho tenha aprendido a amar o que eu, sua mãe, Bénard da Costa e Sophia de Mello Breyner amamos: os filmes, as artes, as palavras (sussurradas ou não).

Ou seriam os duplos, meu e de minha mãe, em uma dimensão a que eu só tive acesso nesse momento mágico?

Talvez por isso, até hoje, esse seja meu Scorsese preferido.






Sérgio Alpendre

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