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“Viana Vermelha”

por João Palhares · 29 de Junho, 2020
Centro Comercial 1º de Maio, Viana do Castelo


Os filhos da televisão, das cassetes e dos cinemas dos centros comerciais dos anos 80 e 90 já estavam habituados ao confinamento e ao distanciamento social. Faltavam às aulas ou saíam à tarde e à noite para ir a sessões às moscas e desciam ruas e avenidas sem ninguém que se avistasse ou ouvisse, nos Invernos desta vida. As paisagens desoladas desses centros comerciais, dizimados pelos novos, talvez os consolassem ou dessem alento, como um sonho distante mas pejado de promessas. Porque entre tudo quanto havia nesta vida, queriam a incumbência e o projecto de uma causa perdida, enquanto ouviam os passos a ecoar pelas lojas liquidadas e pelas montras partidas. Podiam fumar ou não, podiam ser adolescentes ou não, mas fizeram todos o mesmo percurso. “Vende-se,” “vende-se” e “aluga-se.” “Vende-se,” “vende-se” e “aluga-se.” Três ou quatro andares exactamente nestes reparos e nestes termos, escada acima escada abaixo.

A seguir a um Brian De Palma ou a um Michael Mann, certamente a um Tarantino também, que os seduziu com as mil referências e homenagens à cultura popular com uma energia e uma paixão que até aí talvez desconhecessem nos outros, podiam percorrer os corredores vazios pelo caminho mais longo e enchê-los com personagens que achavam que eram suas mas que afinal eram dos filmes. As projecções nunca acabavam e transformavam-se mesmo em sonhos vívidos. Podia ser no Braga Shopping, no Eborim de Évora, decerto em muitos no Porto ou em Lisboa, afundados em galerias comerciais desertas e sensíveis aos seus devaneios e divagações acordadas, mas eram as noites no Centro Comercial 1º de Maio. No cinema Verde Viana, em Viana do Castelo.

Noite, então. Estamos no Inverno. Os Invernos frios, húmidos e desanimadores de Viana. No grande largo que recebe o centro comercial com a metade imponente e cortante de um barco virado para Leste, um homem sobe as extensas escadas de acesso ao 1º de Maio com um saco desportivo. Toca o telemóvel e o homem atende, visivelmente nervoso. Começam-se a ouvir disparos abafados por um silenciador e as balas resvalam e ecoam pelo grande largo vazio. O homem começa a correr sem conseguir pensar no que faz e entra dentro do shopping. Já no interior, procura outra saída, mas vê dois vultos familiares encostados à porta. É obrigado a subir. Meio perdido entre as galerias labirínticas do espaço, vai espreitando pelos varandins interiores no primeiro e no segundo andares para tentar situar os passos ameaçadores que o parecem seguir. Nada. Passando pelos corredores, olha para uma montra de televisores ligados às câmaras de vigilância numa das esquinas do lado poente. Nada. Começa a ouvir música e aproxima-se da fonte sonora, o que o leva a um pequeno largo branco e luminoso limitado por escadas e mais um varandim. Há uma porta aberta e, atravessando-a, o homem vê uma pessoa sentada atrás de um balcão. Aproxima-se e compra um bilhete para uma sessão de cinema. O filme é o Detour, de Edgar G. Ulmer. Ao entrar na sala, vai à fila de trás e esconde o saco desportivo por baixo dos bancos. Então dirige-se para o ecrã e vemos e ouvimos Claudia Drake cantar

            Your eyes are blue, your kisses too,
            I never knew what they could do.
            I can’t believe that you’re in love with me.
            You’re telling everyone you know
            That I’m on your mind each place you go
            They can’t believe that you’re in love with me.

O homem já está sentado numa das filas da frente. Está pouca gente na sala, todos distantes uns dos outros. Aparecem sombras muito estranhas na audiência, vão surgindo vultos misteriosos nos lugares superiores, rodeados por uma grade larga. Há entradas e saídas durante a projecção, vai-se descobrindo aos poucos o que havia no saco, o centro comercial torna-se um pequeno campo de investidas e recuos, com alguns diálogos, com algumas explicações, com homens e mulheres em luta por um canto para si neste mundo, num último trabalho antes do abandono definitivo de uma vida dedicada ao crime. Podia haver pequenas histórias, pequenos rancores ou frustrações amorosas entre eles. A certa altura pode-se ouvir a narração de Tom Neal às curvas nocturnas pela estrada depois de ser atraiçoado pelo destino:

            That’s life. Whichever way you turn, Fate sticks out a foot to trip you.

Mais tensão e mais confrontos, o cerco começa-se a fechar. Já se conhece o barco encrustado de uma ponta a outra, as galerias e os varandins de fio a pavio, as tentativas de estratégia militar começam a descambar, há certamente lugar para umas corridas desenfreadas pelas galerias desertas, talvez até desse para uma cena com Viana em pano de fundo, um plano a pique de alguém encurralado a armas de fogo na proa aguçada. O homem regressava a custo, no final talvez conseguisse ou não chegar ao saco, sentava-se já perto do largo luminoso, encostado a uma parede branca, e ouvia-se Tom Neal uma última vez:

         Yes. Fate, or some mysterious force, can put the finger on you or me for no good reason at all.

Fora da cabeça e fora das projecções, o título talvez precisasse de trabalho, a presença de Detour talvez devesse ser diluída ou transformada noutra coisa, não se podia depender dela para atingir picos dramáticos, há muitas histórias de assaltos no Norte e de delinquência em centros comerciais (manchetes recentes: “Três homens e uma mulher detidos pela Polícia Judiciária”; “Centro comercial abandonado é vandalizado”), havia ligações potencialmente interessantes a Darque que se podiam seguir, informadores privilegiados que se podiam ouvir. E não se podia matar personagem nenhuma para colmatar a falta de ideias – conselho fabuloso ouvido há dois anos. Nota-se sempre, quando isso acontece. O centro comercial era uma das personagens principais, só precisava de mais sangue, de mais suor e de mais lágrimas, homens e mulheres de corpo inteiro a fazer pela vida nas ruínas da civilização. Mas talvez fique melhor como sessão imaginada durante as sessões secretas e nocturnas do Verde Viana.



João Palhares

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