Percebe-se, pois, que o nosso cérebro retém imagens que jamais se apagam. Essas minhas imagens, talvez deva dizer cenas, no caso acompanhadas por apontamentos de som, são de filmes. Há livros que leio que me fogem nos interstícios de alguma coisa que aqui dentro as filtra. Não crio cenas de livros. E há muitas narrativas que se desvanecem, sejam de filmes ou de livros. Mas estas cenas de que vos falo não são exactamente como nestes filmes, são adulteradas pela memória, talvez por terem sido criadas num ou noutro contexto que não sei precisar. E que me revisitam cada vez que regresso ou cada vez que parto.
CENA PRIMEIRA ADULTERADA
Uma estação de comboios com cores muito quentes, um comboio a dar o toque de marcha, um jovem de menos de 30 anos corre em direcção à carruagem, o comboio vai já em andamento. Consegue entrar a tempo. Deixa para trás uma jovem que o acompanhava. Do interior, debruça-se sobre a janela e deixa que o vento lhe despenteie o cabelo à medida que acena para o cais, esboça um sorriso tímido.
CENA ÚLTIMA ADULTERADA

Uma vasta imensidão de campos de cultivo muito verdes. Ao fundo uma linha contínua de eólicas que rodopiam a toda a velocidade. Um homem ainda jovem vem a pedalar pela estrada alcatroada, traz uma criança sentada no cesto frontal da bicicleta. À medida que os acompanhamos o vento começa a soprar cada vez com mais intensidade, começa a ouvir-se um piano que acompanha a sinfonia criada pelo pedalar e pelo vento durante algum tempo.
Paulo Carneiro
* Xavier (Manuel Mozos, 1991-2002)
** Quaresma (José Álvaro Morais, 2003)