
De que modo se transfere e prolonga o que fica a ressoar em nós de um filme ao sairmos de uma sala de projecção de um cinema naquilo que encontramos cá fora na rua?
Impregnado por aquilo que do filme ficou em mim – nessa noite de estreia no cinema Monumental em Lisboa na sessão das 24h30 com eXistenZ de David Cronenberg a 7 de Maio de 1999 – eu e outras pessoas que saíram da mesma sala onde o filme tinha acabado de ser projectado, partilhámos uma alucinação logo que chegamos à rua em frente à porta do cinema como se estivéssemos perante uma sua extensão.
Retive por escrito no meu caderno esse acontecimento nessa noite de Maio de 1999, devolvendo-o agora aqui em Maio de 2020 tal como irrompeu diante de nós.
Plug-in Cronenberg
Um jacto de água inunda o pavimento à saída do Monumental.
Três homens com mangueiras ligadas pulverizam de água um único carro que ficou estacionado mesmo em frente à porta da saída que dá acesso às salas de cinema do Monumental.
As três mangueiras estão-lhe apontadas e cobrem-no de água.
O carro está ali envolto numa membrana de água.
Os homens que seguram as mangueiras mantêm-nas apontadas ao carro e olham-no fixamente.
Um quarto homem dirige-os de fora da operação, com as mãos nos bolsos preso à membrana de água que banha o carro.
O carro está coberto de um brilho viscoso de água que escorre pela chapa metálica.
Está tudo agarrado àquela membrana-carro.
Ficamos todos ligados a ela.
Os donos do carro que sairam de eXistenZ também.
“Entrem no carro!” grita o homem que dirige a operação de limpeza.
As mangueiras injectam o pavimento e a calçada com o mesmo brilho viscoso da água-membrana.
Os donos do carro correm abrem as portas e entram.
A membrana de água escorre pelo passeio até onde estamos nós, que saímos de eXistenZ.
O condutor liga o motor do carro.
As mangueiras inundam-no de novo com o líquido viscoso.
Alguém dentro do carro acende um cigarro.
Apanhamos com a espuma viscosa na cara. Recuamos.
O carro faz marcha atrás derrapa na membrana viscosa de água patina e arranca em direcção ao semáforo.
Os jactos de água das mangueiras empurram o lodo acumulado no sítio para uma sarjeta aberta.
Dois dos homens seguram agora pás que empurram a massa de lodo para dentro da sarjeta.
Raspam o chão até escorrer tudo para dentro da sarjeta.
O carro passou o semáforo.
O jacto de água rasante ao pavimento liberta ar húmido, refrescante. Molha a cara.
Está fresco.
A pele estava com sede. Acendo um cigarro.
Berlim, 26 de Maio de 2020
Sérgio Taborda