
No tempo em que Dr. Félix Ribeiro ainda não era nome de sala, em que os vírus eram outros e em que o cinema português tinha muito má reputação, havia um nicho de mercado para filmes que incluíssem nos títulos abstracções como “Povo”, “Cooperativa Agrícola” ou “Poder Popular”. O cinema americano boicotava os distribuidores portugueses, as salas comerciais mostravam cinema jugoslavo e a distribuição alternativa improvisava telas nos locais mais improváveis.
Lembro-me de ter assistido nessa época, no Auditório da Biblioteca Nacional, a um ciclo, revolucionário e pedagógico, de filmes portugueses assinados por realizadores como “Colectivo dos Trabalhadores da Actividade Cinematográfica” e que incluía uma oddity que me suscitou a curiosidade: Benilde ou a Virgem Mãe. As linhas programáticas do ciclo, distribuídas em stencil à entrada das sessões, eram muito claras: o filme era programado como exemplo das inanidades com que se entretinha a burguesia, enquanto os cineastas revolucionários se ocupavam dos problemas reais do povo.
Manoel de Oliveira era uma espécie de revenant, um talento mítico e incompreendido que fôra maltratado pelo antigo regime e de quem não se sabia muito bem o que fazer. Ninguém estava preparado para o vulcão que ali vinha. Benilde tinha tido uma carreira invisível no Apolo 70 no final de 1975; a verdade é que nada podia estar mais afastado do ar do tempo do que aquela história de religiosidade histérica que Oliveira fôra desenterrar do espólio do seu amigo José Régio. Incrédulo e preparado para o pior, dei-lhe uma oportunidade. O tiro saiu-lhes pela culatra: converti-me àquele cinema de palavra, de declamação “pouco natural”, de verso e reverso de décor de teatro.
Pouco tempo depois soube que Manoel de Oliveira ia reincidir e estava à procura de caras e vozes para uma versão cinematográfica de outra obra literária completamente fora de moda, o Amor de Perdição. Uma tarde, não sei como, dei comigo a acompanhar a minha amável colega de faculdade Kiki aos estúdios da Tobis, onde nos esperava Oliveira em pessoa, preparado para nos observar e escutar a ler uns textos de Camilo. O mestre só teve olhos para ela, e não sem razão pois entregou-lhe o papel de Teresa de Albuquerque, mas nem isso me demoveu da devoção.
Dois anos depois, numa época em que as telenovelas brasileiras fidelizavam religiosamente durante meses a fio o público, o novo filme de Oliveira, filmado a cores numa versão para o cinema de 262 minutos, foi estreado na RTP (co-produção oblige) em 6 episódios semanais de 45 minutos cada, todos precedidos de um prólogo que resumia a acção do episódio anterior e transmitidos a preto e branco (a norma da altura). Foi um desastre épico, com a crítica praticamente unânime a desancar na obra e o público a transformá-la na chacota do momento. Há que reconhecer que, com a sua ausência de grandes planos, a redução da trama da novela de Camilo a uma sucessão de planos afastados fixos e hieráticos, a ausência da cor em que tinha sido rodado, o filme de Oliveira era a mini-series mais anti-mini-series que imaginar se podia. Nada disso me importou: ainda sem ver o vermelho daquela manta sobre a cama de Teresa, mas encantado com os planos dreyerianos de Simão detrás das grades, tomei-a como um aperitivo (digamos, um longo trailer)do verdadeiro objecto que se seguiria, o filme.
Amor de Perdição fez, entretanto, um détour pela Europa, Oliveira foi redescoberto e incensado pela crítica italiana e francesa e, quando finalmente estreou em sala em Portugal (primeiro no Festival da Figueira da Foz, depois no Grande Auditório da Gulbenkian – onde o vi, extasiado – e, por fim, no incontornável Cinema Quarteto), a crítica nacional rendeu-se, algo envergonhada, mas o público manteve-se irremediavelmente arredado, não lhe tendo perdoado a “chatice” a que tinha sido exposto aquando da sua passagem na RTP.
Todo este “caso” deixara em mim marcas profundas. Os últimos estertores de um revolucionário amador e os germes nascentes de um aspirante a programador produziam uma mistura explosiva de proselitismo difícil de conter.
Na época, não havia muito mais alternativas de escoamento profissional para um recém-licenciado de letras do que a docência; daí que um ano depois disto tudo me encontrasse a dar aulas no novo 12º ano, nem mais nem menos do que a novel disciplina “História das Artes Visuais”, com um programa experimental, que incluía temas como o retrato na pintura portuguesa, o azulejo como arte decorativa ou, vejam só, a história do cinema português.
Para o retrato e o azulejo recorria-se a textos esparsos (a bibliografia era quase inexistente), a colecções emprestadas de diapositivos (o apoio do ministério era invisível) e a museus vivos (em particular o recém-criado Museu do Azulejo, cujo primeiro director, Rafael Salinas Calado, foi incansável), mas na era pré-Internet e pré-DVDs, em que o VHS ainda não se difundira e os projectores de 16 mm eram dificilmente acessíveis (para não falar da inexistência de conteúdos), o único recurso para a “história do cinema” seria a Cinemateca. A nossa escola era, felizmente, em Lisboa, e a Cinemateca acabava de estrear as suas novas instalações na Barata Salgueiro.
Para iniciar aquela geração de candidatos a belas-artes (as artes visuais era matéria obrigatória para aquela área) na história do cinema português, e ainda mal curado da frustração com o Amor de Perdição, ocorreu-me uma ideia pouco menos do que genial: as três etapas da evolução de qualquer arte – primitiva, clássica, moderna –, a que o cinema não escapava obviamente, podiam ser idealmente representadas através das três versões do romance de Camilo que haviam sido feitas por Georges Pallu em 1921, por António Lopes Ribeiro em 1943 e, claro, por Manoel de Oliveira em 1978. Vencida alguma inércia da Cinemateca (não era certamente muito frequente este tipo de actividades), esta dispôs-se a organizar as sessões e a acolher as turmas ao longo de três semanas, em que seriam apresentados os filmes, precedidos de uma pequena introdução e seguidos de longas e interessantes horas de discussão e análise nas aulas.
O meu entusiasmo encontrou um eco moderado inicial junto da população discente, para quem a ideia de sair da escola e assistir a sessões de cinema integradas no programa lectivo pareceu atraente, que rapidamente se transformou em resistência passiva quando se deram conta do que os esperava: três versões do que algumas almas mais impacientes viam como um pastelão romântico inenarrável. A possibilidade única de assistirem em sala a um filme mudo de 184 minutos, numa altura em que os únicos filmes mudos que a grande maioria havia alguma vez visto eram umas curtas de Charlot, provavelmente num programa da tv do antigamente, chamado “Museu do Cinema” e apresentado num estilo inconfundível por António Lopes Ribeiro, a um filme dos anos 40 realizado pelo man himself, Lopes Ribeiro, duas horas com a fina flor do teatro português, ou à versão integral e definitiva do filme de Manoel de Oliveira, 262 minutos geniais, não parecia comover os potenciais futuros artistas.
Nada demovia, porém, o entusiasmo do docente. Pareceu-me que o ideal seria começar as sessões pela obra de Manoel de Oliveira, na verdade o grande filme do grupo, que me iria permitir estabelecer paralelos com o cinema contemporâneo, hollywoodiano e de arte e ensaio (como então se dizia), e com o cinema do passado, fazendo a ponte para as outras duas obras emblemáticas desse cinema. Propostas duas datas pela Cinemateca e obtido o acordo da escola para que os alunos se ausentassem por uma longa tarde, era necessário que os jovens manifestassem a sua preferência de data. Foi posta a circular uma folha em que cada aluno deveria inscrever o seu nome, identificar a turma a que pertencia, e colocar uma cruz na coluna do dia A ou o dia B. Essa lista era encabeçada pelo título “AMOR DE PERDIÇÃO” DE MANOEL DE OLIVEIRA.

Embora a sessão fizesse parte das actividades lectivas, a sua assistência era voluntária e, por isso, fiquei surpreendido quando vi que várias folhas com assinaturas tinham sido anexadas à primeira página, parecendo querer dizer que um número inesperado de alunos se tinha inscrito para ver o filme. Foi com indisfarçável orgulho que recebi a lista e que, numa rápida contagem, verifiquei que o número de assinaturas excedia o número de alunos que leccionava. O boca-a-boca parecia ter funcionado e havia uma pequena multidão de jovens entusiasmados que se dispunham a dar uma oportunidade a Oliveira.
À noite, em casa, repassei as folhas de trás para a frente, preparando-me para contabilizar as escolhas. Surpreendeu-me que as colunas para a escolha da data estivessem praticamente em branco. Quando atentei no título, verifiquei que algo havia sido anteposto. “AMOR DE PERDIÇÃO” DE MANOEL DE OLIVEIRA estava precedido das seguintes palavras, desenhadas com determinação: ABAIXO-ASSINADO CONTRA.
No dia seguinte, 23 de Abril de 1981, um incêndio destruiu totalmente a sala de cinema da Cinemateca. Aquele tema do programa era opcional e pareceu-me mais prudente deixá-lo cair.
Carlos Nogueira