
foto: João Lameira
Sempre que vou ver um filme à Cinemateca, apanho a folha de sala daquele armário ao lado da bilheteira. Às vezes, leio-a em pé, cá fora, a fumar um cigarro. Noutras, já na sala, enquanto o filme não começa. Muito raramente, só depois de a sessão terminar, nos transportes públicos ou em casa. Dobro-a invariavelmente em oito, e guardo-a na carteira (no Verão) ou no casaco (no Inverno). Este ritual obedece a outra regra, inviolável: só posso levar folhas de sessões a que fui. Ainda que tenha visto o filme incontáveis vezes, o conheça de cor e salteado, e até gostasse de ler o que alguém tem a dizer sobre o dito, se não fui à sessão, não fico com a folha. (Escusado será escrever que, se for ver um filme à Cinemateca uma segunda vez e, portanto, tiver uma folha igual àquela, levo-a na mesma.) Até hoje, segui este preceito escrupulosamente, sem hesitações, resistindo a qualquer tentação. Nunca deixarei de olhar de lado para aquela gente que recolhe todas as folhas de cima do armário e claramente não foi a todas as sessões do dia. Na pior das hipóteses, fi-lo uma vez, por outra pessoa; relutantemente, é claro, e sabendo que iria desfazer-me das provas do crime em breve.
Chegado a casa – ou quando a encontro esquecida na carteira ou no bolso do casaco – pego na folha, desdobro-a em dois, e ponho-a dentro do maço de folhas da Cinemateca, ordenado cronologicamente, da sessão mais antiga para a mais recente. Um arquivo que me permite consultar os filmes vistos na Barata Salgueiro e no Palácio Foz, assim como as datas em que o fiz. Ou permitiria, caso o maço não se tivesse dispersado em três, talvez quatro. Nas mudanças de casa e de vida, perdemos o rasto a certas coisas. O primeiro maço, envolto num elástico lasso, deve estar lá por casa dos meus pais, largado entre outras relíquias, assim como o segundo (e o talvez terceiro). Espero que sim. Tivesse-o aqui à mão e poderia ler na folha amarelecida e dobrada nas pontas o título do primeiro filme que vi na Cinemateca, um documentário sobre Lee Strasberg e o Actors Studio. E ter a certeza da data da minha estreia – sei que foi em finais de 1997, provavelmente Novembro, quem sabe se Outubro ou Dezembro.
Não tenho dúvidas, porém, acerca do local da sessão: a antiga sala da Barata Salgueiro, antes das obras de remodelação no início do milénio. Apesar de a ter frequentado no máximo uns dois ou três anos, ainda é a minha preferida. Recordo com nostalgia as cadeiras de estofo branco desgastado com pouco espaço para as pernas. Sentado nelas, vi pela primeira vez Rosemary’s Baby e Frenzy, The Barefoot Contessa e Cape Fear, O Fio do Horizonte e How Green Was My Valley. Tentei perceber, sem ajuda de qualquer legenda (e sem sucesso), os diálogos em francês de Les Enfants Terribles de Melville, de Nouvelle Vague de Godard e dos meus tão queridos Les parapluies de Cherbourg de Jacques Demy. E assisti ao impensável: a Cinemateca aberta a um domingo, nas comemorações dos 25 anos do 25 de Abril, o dia em que esperei calçado pelos sapatos do defunto de João César Monteiro.
Por essa altura, tinha a minha pequena superstição. A folha vir assinada J.B.C. numa sessão em que a música para chamar o público à sala fosse a banda sonora de Johnny Guitar era sinal de sorte, de que algo muito bom me iria acontecer. Embora o cruzamento tenha ocorrido uma vez por outra, a profecia jamais se concretizou, pelo menos não da maneira que eu queria. Pouco importa. Nessa época, presságios e deslumbramentos faziam sentido. Como no cinema.
Inevitavelmente, a Cinemateca tornou-se prosaica. Primeiro, mudou-se para o velho Palácio Foz, aquando das tais obras; a sala do Palácio era e continua lindíssima – hoje alberga a Cinemateca Júnior –, mas não tinha o mesmo encanto. Após ano e meio, regressou à Barata Salgueiro, e a desilusão foi grande. Casmurro e avesso à mudança, demorei a habituar-me às novas aparências. Entretanto, vi Fords e Mizoguchis, Ophüls e Minnellis, Hawks e Rossellinis, Langs e Sjöströms, Friedkins e Monicellis, Renoirs e Scorseses, Donens e Antonionis. Aos poucos, aprendi a não desgostar das novas salas (novas, como quem diz, têm quase vinte anos), especialmente da Félix Ribeiro, onde encontrei o meu lugar, ou melhor, a minha zona, ali na terceira ou quarta fila, mais para o centro, a descair para a esquerda.
Outros motivos me (re)aproximaram da Cinemateca. As primeiras reuniões do À pala de Walsh foram lá, incluindo as inúmeras para encontrar o nome do site (esteve para chamar-se Ozu 3D e A Virilha de Kurt Russell, entre trocadilhos similares). Tempos depois, trabalhei na livraria, no primeiro andar, com vista para a esplanada. Estranhos tempos. Supostamente deveria ter sido um enorme prazer trabalhar num sítio de que gosto tanto. Não sendo desagradável, foi o período em que vi menos filmes nas salas da Cinemateca. Em cerca de ano e meio, apenas um: Il sorpasso de Dino Risi.
Todos os Agostos, a Cinemateca encerra para férias. Os espectadores desandam para outras paragens, os programadores esboçam a próxima saison. Ninguém sofre por aí além.
No entanto, este Grande Agosto provocado pelo Sars-Cov-2 evidenciou a falta que a Cinemateca me faz. O quanto me afeiçoei ao cinema ao ar livre na esplanada – onde revi Bringing Up Baby, o filme mais traquinas da história, e In a Lonely Place, o mais triste –, apesar do frio e do vento de algumas noites de Verão. O quanto vou conhecendo com os “professores” das Histórias do Cinema na Luís de Pina – Miguel Marías a falar de comboios como de cinema (e vice-versa), a propósito de Jacques Tourneur; Mário Jorge Torres a expor a leveza do musical sem música de muitos melodramas; Bernard Eisenschitz a fazer-me finalmente chorar ao ver Ordet de Dreyer (infelizmente, sou mais de adormecer em sala do que de chorar). O quanto me reconforta a sessão dos “reformados”, todos os dias úteis às 15h30, nas quais encontro as mesmas caras há não sei quantos anos (e algumas, de outros tempos, comparecem, quais fantasmas). Ou o quanto adoro, faça chuva ou faça sol, passar as tardes de sábado fechado dentro de uma sala de cinema a ver dois filmes de seguida. Partindo de um conceito simplicíssimo, os double bill originam escolhas de programação imaginativas e criativas quando não absolutamente brilhantes. Recordo com entusiasmo o que emparelhou o nascer-do-sol de Sunrise de Murnau ao de One from the Heart de Coppola. Ou o que pôs Last Action Hero a fazer pandã com O Sétimo Selo de Ingmar Bergman, uma inteligente e provocadora sessão dupla programada pelo meu amigo Luís.
A folha do filme de John McTiernan, escrita pelo meu outro amigo Luís, foi a última que guardei*, dobrada em dois, no meu maço (o terceiro, talvez quarto).
João Lameira
* É mentira, ainda fui a outra sessão e arrumei a folha correspondente (como não poderia deixar de ser), mas esta calha bem ao remate do texto.