A sala de cinema faz-nos ter uma experiência particular do filme que estamos a ver. Óbvio. Mas eu não estou a falar da dimensão da tela, da maneira como o som e o escuro nos fazem imergir no filme e alterar a nossa noção do tempo, ou mesmo do espaço. Estou a falar da sala como espaço físico, com cadeiras e paredes (ou não) e condições de projecção que alteram o filme que estamos a ver, acrescentando-lhe novas leituras.
Às vezes a sala acrescenta coisas que não queremos: o som de obras no edifício pontuava o desmoronar de uma relação no Iklimler / Climas do Nuri Bilge Ceylan; uma lente anamórfica mal colocada no projector (ou a falta dela) distorcia por completo o The Box do Richard Kelly dando-lhe uma perspectiva ainda mais distópica; as paredes repletas de bonecos animados na sala Kids do multiplex do Campo Pequeno, tornava o Fantasia Lusitana do João Canijo numa experiência bizarra, onde as imagens de arquivo do tempo do Estado Novo animavam as figuras da Disney pintadas nas paredes, num contraste que tornavam ainda mais deprimentes as imagens da ditadura.
Mas nenhuma destas experiências me impediu de gostar dos filmes. Ver A Comédia de Deus do João César Monteiro com as bobines trocadas não me impediu de amar o filme. Fazem-se novas leituras quando vemos o banho de leite, antes da Joaninha chegar a casa do João de Deus e ele a convidar a tomar banho, este convite ganha uma perversidade ainda maior, por já termos visto o que acontece a seguir.
Quando vi o Fitzcarraldo do Werner Herzog no anfiteatro ao ar livre do jardim da Gulbenkian não me incomodou nada o som dos aviões, antes pelo contrário, se aquele espaço era uma extensão do filme (rodeados de vegetação enquanto mergulhávamos na Amazónia), esse elemento dissonante dos aviões fazia tanto sentido ali, como um barco a subir uma montanha. O filme não passava só na tela, estava a toda a nossa volta, era o verdadeiro cinema 3D, sem óculos nem dores de cabeça.
Pode ser só durante um momento que o filme rompe a tela e ganha tridimensionalidade.
Uma vez fui ao Cine Paraíso ver I racconti di Canterbury do Pasolini (depois de ter sido um cinema porno e antes de ser convertido em Cinema Ideal, o Cine Paraíso foi durante algum tempo um cinema de reprise, com projecções em 35 mm de filmes clássicos). Num dos contos do filme, um rapaz chama pela sua amada à porta de casa dela, mas ela está na cama com outro amante e tenta despachá-lo. Ele pede-lhe ao menos um beijo e ela diz que sim, mas quando ele se estica para a beijar ela abre a janela e dá-lhe um peido na cara. O rapaz humilhado decide vingar-se e vai a um ferreiro buscar um ferro em brasa para espetar no rabo dela. Quando o rapaz sai para a rua a correr, com o ferro em brasa na mão, a imagem fica estática e o frame começa a queimar, bolhas de luz enchem o enquadramento até este ficar todo branco e a projecção parar. A sala fica escura durante um bocado, alguém pede desculpa e depois o filme retoma, mas para mim não precisava de ter continuado, eu já estava satisfeito com aquele momento performático em que o filme começou a interagir com o seu próprio suporte.

Quando a Cinemateca fez as suas obras de remodelação, mudou-se para o Palácio Foz levando consigo as suas cadeiras de napa branca (que aliás continuam lá no que é agora a Cinemateca Júnior). Eu era frequentador assíduo e adorava aquelas cadeiras super-confortáveis e que só uma vez se tornaram num incómodo. O filme era o Repulsion do Polanski, na tela a Catherine Deneuve entrava em paranóia fechada em casa. Na sala fazia calor, era verão e a sala do Palácio Foz estava muito quente (ou seria do filme?). A Deneuve percorria o corredor da casa, as paredes molhadas, mãos saem das paredes para a agarrar. Eu estava de t-shirt e sentia o meu braço tocar na napa da cadeira e o suor a escorrer, a napa a colar-se ao meu corpo, a cadeira parecia agarrar-me também.



Vi o Inland Empire do David Lynch no Shopping Cidade do Porto numa altura em que estas salas estavam prestes a fechar. Eu era a única pessoa na sala. Já quase no final do filme há uma cena em que a Laura Dern entra numa sala de cinema e na tela vê-se a si própria a entrar na sala de cinema. Nesse preciso momento abriu-se a porta da sala onde eu estava a assistir ao filme. Eu era a única pessoa na sala. Percebi que a porta se estava a abrir, que alguém espreitava para o interior da sala, mas não olhei para trás, naquele momento tive medo de me ver a mim próprio a entrar na sala.
André Godinho