
Vou partir do princípio que o trabalho que fiz como ator no filme de João Nicolau Technoboss, foi suficiente para que o personagem Luís Rovisco exista. Durante muito tempo era incapaz de o admitir. Hoje em dia, confortado pela opinião de outros que não considero suspeitos de parcialidade, dou comigo a achar que cumpri pelo menos os mínimos e, nalgumas cenas, mais do que isso.
O que vou contar sobre a maneira como, conduzido pelo João, participei no filme, só poderá ter algum interesse se se considerar que ao resultado final é razoável.
Fui escolhido para o papel sem ter nenhuma competência ou experiência como ator ou cantor. Por aquilo a que se chama acaso, isto é, sem premeditação nem previsão, o realizador conheceu-me e resolveu pedir-me para fazer casting. Depois uma eliminatória e a final, competindo com não sei quem, acabou por me escolher.
Aceitei sem nunca ter lido o argumento por inteiro. Só muito tarde, no fim das filmagens, o fiz. Nessa altura já quase tudo estava nas bobines, tinha de decorar o que faltava, concluí a leitura. Não aprendi mais do que tinha vindo a saber. Só depois de ver várias vezes o filme comecei a ter uma opinião sobre o personagem.
Antes do casting o João descreveu-me muito sumariamente quem era o Luís Rovisco. Passaram-me para as mãos uma sinopse, duas cenas e duas canções. Isto na primeira sessão. Para a segunda não foi preciso reenviarem-me a sinopse. Em relação a cada cena eu não sabia o seu lugar na sequência da história nem o que se passava antes ou o que se passava depois.
Nos ensaios, o método era semelhante. A diferença é que nessa altura já tinha o guião comigo. Com alguma antecedência, diziam-me os números das cenas que teria de trabalhar para o próximo exercício. Cenas soltas, a maior parte das vezes. Como a minha maior dificuldade era decorar as falas, não tinha tempo para fazer outra coisa que não fosse tentar fixar o texto e esboçar uma maneira de o dizer. Não tinha tempo, nem curiosidade, para fazer mais nada, incluindo ler o argumento.
Durante os ensaios, como já tinha acontecido no casting, o João dava indicações muito precisas sobre como devia eu fazer (foi porque sabia desde o princípio que ia ser dirigido e bem dirigido por ele que tive o topete de aceitar o convite). Algumas vezes era o João quem representava, para eu o imitar à minha maneira. Faz assim, mas tu é que és o ator, eu não sei fazer bem. Também aconteceu deixar-me fazer como eu quisesse, para a seguir dar as suas indicações. Duas ou três vezes, voltámos atrás, abandonávamos um caminho que ele tinha pensado ser proveitoso, mas afinal concluía que não era.
Nos ensaios, como em toda a rodagem, o que eu queria era que ele gostasse, que ele ficasse satisfeito com o meu trabalho. Na rodagem, algumas vezes nos abraçámos quando a coisa foi mais difícil de conseguir. Que bem me sabiam aqueles abraços. Não havia melhor recompensa pelo esforço.
Quando fomos filmar já tínhamos ensaiado quase todas as cenas. Mas nem assim eu tinha uma opinião sobre quem era o Luís Rovisco.
Sabia que aquele homem, fisicamente parecido comigo, era uma criação do realizador a que eu dava corpo e voz, como se costuma dizer. Claro que eram o meu corpo, a minha voz. Não obedecia como um boneco, uma marioneta. Mesmo que o quisesse não conseguiria. Havia uma parte minha, ou seja, aquilo que eu era capaz de fazer. Não sabia que parte era essa nem estava preocupado com isso. Ainda hoje não sei. Sei, porque li declarações do João a explicar, que a maneira de filmar, isto é, o lugar da câmara, ou a luz, a duração dos planos, por aí fora, eram escolhidos tendo em consideração aquele Rovisco. Era a minha contribuição.
Estabeleceu-se uma relação fortíssima entre o criador e a criatura. Tinha confiança total no João porque o filme é dele, ele é que sabia o que deveria ser o personagem, como é que se devia comportar. Havendo cenas em que o homem não se comporta como uma pessoa normal. Faz umas maluquices. Eu não sabia a que propósito tinha de imitar uma arara (por acaso acho que esse plano não ficou grande coisa, poderia ter feito melhor). Só depois de ver o filme entendi.
Nas filmagens, tal como acontecera nos ensaios, concentrava-me na próxima cena que tinha de fazer. E a primeira preocupação era não me enganar a dizer o texto. Quando começou a rodagem eu não sabia de cor cena nenhuma. Mesmo que as tivesse decorado no ensaio, depois esquecia-me. Até ao momento de ir para o local de filmagem eu estava agarrado ao texto como o aluno atrapalhado antes de entrar na sala de exame.
Se, apesar das minhas limitações, o personagem vive, isso deve-se ao processo de trabalho do realizador. E à ligação que estabelecemos.
Só vi o filme, se se pode dizer que o vi mesmo, quando estreou no Festival de Locarno. Antes disso, na primeira conversa que tive com um jornalista, ele fez-me algumas perguntas e alguns comentários sobre o personagem. Não sabia responder. Não me calei, por excitação infantil, disse umas patacoadas, sem sentido ou pertinência, que o jornalista, caridosamente, nunca citou. Lembro-me que me perguntou se eu não achava que o filme era melancólico. Fiquei espantado. Pensava que o personagem era divertido. Conhecia as cenas, mas não conhecia o Luís Rovisco. Sabia o que ele fez, mas não sabia quem ele era, quem ele é. Hoje acho que o jornalista tem razão. Há uma melancolia constante no personagem e no filme.
Ao fim de muitas visualizações, tenho uma opinião de espectador sobre aquele homem. Para isso tive de me separar de Rovisco. Já não sou eu quem está ali, é o diretor comercial de uma empresa que cabe em duas salas, etc. e tal.
Agora acontece-me uma coisa estranha. Sem ser propositado, digo frases, palavras, expressões, tenho gestos, maneiras de dizer, comportamentos, do Rovisco. Depois de me separar dele, o homem volta e meia toma conta de mim. Como se habitasse o meu corpo e a minha cabeça. Ficou-me na pele e não consigo desembaraçar-me dele. Também não me importo. É bom tipo e tem piada.
Miguel Lobo Antunes