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Eureka, o movimento das cidades, a magia do cinema

por Joana Ascensão · 29 de Abril, 2020
Eureka


Num momento em que atravessar o centro deserto de uma cidade como Lisboa é uma experiência verdadeiramente singular, pensamos em tantos filmes que de algum modo tocam na questão essencial da relação directa do cinema com as cidades, contribuindo decisivamente para a construção do seu imaginário. O cinema é uma arte urbana, indissociavelmente ligada às cidades e ao movimento dos seus habitantes, assim como é nas cidades que surgem as primeiras salas votadas ao cinema, arte eminentemente colectiva e comunitária que visa necessariamente expandir os limites da nossa experiência. Face a um confinamento generalizado motivado pela actual pandemia, as cidades de hoje estão mais próximas das cidades das origens da fotografia urbana que, com os seus longos tempos de exposição, só conseguia registar ruas desertas, em que apenas se descortinavam vultos de fantasmas em movimento, ou da Paris fotografada por Atget, que privilegiava a arquitectura e as ruas esvaziadas da presença dos corpos, do que das cidades filmadas pelos irmãos Lumière e por tantos outros operadores e realizadores espalhados pelo mundo que, nos primeiros anos do cinema, registavam o dinamismo da vida moderna e as suas multidões. Estamos também longe da Lisboa do Cinema Novo, quando o cinema voltou a sair à rua, ou das ruas ocupadas pelas multidões que, há exactamente 46 anos, festejavam e cimentavam a Revolução de Abril, ao mesmo tempo que alguém as filmava e filmava a fachada do imponente e hoje extinto Cinema Império, em que se erguia o cartaz de O Couraçado Potemkin, que conhecia a sua estreia a 2 de Maio de 1974.

A experiência cinematográfica funde-se assim muito naturalmente com o urbano, das sinfonias urbanas das primeiras vanguardas, a inúmeros grandes filmes de ficção, ou a um cinema experimental, em que muitas cidades se confundem com as suas representações. Num programa intitulado “O Cinema e a Cidade”, realizado em 2017 na Cinemateca, propusemo-nos aflorar algumas destas questões, ligando-as ao progressivo desaparecimento das grandes salas de cinema e à radical transformação nos modos de ver os filmes, no seu estilhaçamento de um grande ecrã partilhado por uma comunidade, para a multiplicidade de pequenos ecrãs. Num dos capítulos desse programa contemplava-se um conjunto de filmes que, de diferentes modos, realizavam um assumido trabalho arqueológico sobre a memória do cinema e das cidades, envolvendo títulos tão distintos como Helsinki, Ikuisestin (2008), de Peter von Bagh, Berlin 10/90 (1991), de Robert Kramer, London (1994), de Patrick Keiller, ou Eureka (1974), de Ernie Gehr.

É a Eureka que voltamos, numa altura em que adiamos para data ainda não definida uma restrospectiva inteiramente dedicada ao cinema de Ernie Gehr, que contaria com a sua presença na Cinemateca. Eureka tem a grande particularidade de ser um filme que trabalha sobre a memória de outro filme, surgindo como o título fundamental da obra de um dos mais influentes cineastas da avant-garde norte-americana, que começou a trabalhar nos anos sessenta, ao lado de Ken Jacobs, Stan Brakhage, Hollis Frampton, ou Michael Snow. Desde então Gehr tem votado grande parte da sua obra a uma reflexão sobre os espaços urbanos e as suas transformações, que trabalha no contexto de uma filmografia dominada por uma extrema singularidade e vontade de experimentação.

Eureka é um filme de “found footage” que resulta da apropriação de um “travelogue”, um impressivo travelling dos primórdios do cinema, registado “mecanicamente” a partir da frente de um eléctrico ao longo de Market Street, no centro da cidade de São Francisco. Como mais tarde se veio a perceber, o filme original foi filmado poucos dias antes do grande sismo de 1906 pelos irmãos Miles, que tinham um estúdio fotográfico nessa mesma rua, que ficou arrasada em consequência do sismo. Gehr refotografou o filme original, distendendo a sua duração através de uma multiplicação dos seus fotogramas, submetendo-o assim a um ralenti extremo, que se prolonga durante 30 minutos, adquirindo Eureka uma dimensão quase hipnótica.Gehr conduz-nos a uma mágica viagem pelo passado de São Francisco, retratando um mundo perdido em que as cidades eram dominadas pelo movimento caótico dos seus habitantes, que atravessam anarquicamente as ruas repletas de viaturas das mais variadas espécies, que conviviam lado a lado: elétricos, automóveis, carroças puxadas por cavalos, bicicletas, etc. Mas tal viagem no espaço e no tempo é simultaneamente uma viagem pelo cinema, em que o grão da película e a sua materialidade acusam a passagem do tempo, evidenciado a sua própria história, ao mesmo tempo que são exacerbados os contrastes, que conferem uma nova pulsação às imagens, que oscilam entre superfície material e profundidade ilusionista, entre abstracção e representação, entre o movimento e imobilidade. Nesse sentido podemos dizer que Eureka centra-se também na exacerbação das propriedades e das possibilidades do cinema, pois para Gehr o cinema é algo que “possui a sua própria realidade” distinta da realidade representada, articulando no filme dois tipos de acontecimentos: os acontecimentos registados pelo filme e os acontecimentos fílmicos, criando a sua coalescência uma experiência de ilusão e anti-ilusão cinematográficas em contínua transformação.

Assumindo um projecto de experimentação em torno do tempo cinematográfico, os filmes de Gehr são frequentemente projectados a velocidades mais lentas que os habituais 24 fotogramas por segundo, o que lhes confere características muito particulares, produzindo-se assim uma nova forma de orquestrar a duração, característica que Gehr partilha com o cinema mudo de Andy Warhol (e que é levado a um extremo em Empire (1964), mostrado na integralidade das suas oito horas de duração no já referido ciclo). Em Eureka, a um movimento pré-determinado no espaço, corresponde assim um novo movimento no tempo, que confere densidade às imagens do filme pré-existente, tempo que não regressa no lento mas constante movimento de uma câmara (e de um projector) que não olha para trás, sempre fixa no edifício ao fundo para o qual os carris convergem. Um movimento imparável da câmara que convida à aproximação ao célebre zoom de Michael Snow em direcção à fotografia da parede do seu estúdio em Wavelength (1967), esse outro grande filme fundador do que P. Adams Sitney designaria como o cinema estrutural.

Como afirmou Gehr em 1971, para lá de uma arte da representação, “o cinema é uma intensidade variável da luz, um balanço interno de tempo, um movimento dentro de um espaço dado”. Cada um dos seus filmes aprofunda essa mesma exploração, pelo que em Eureka retemos simultaneamente tudo aquilo que se prende nos detalhes e texturas das imagens, mas também o rosto de um rapaz que olha insistentemente para a câmara, concorrendo com o movimentos do eléctrico, ou com os corpos que se atravessam e “dançam” à nossa frente, revelando a energia de uma realidade já desaparecida, em que nas ruas coexistiam tantos mundos e estratos de tempo diferentes. Hoje são as ruas de Nova Iorque que ocupam o centro da maior parte dos filmes de Gehr, cidade onde reside e na qual continua a desenvolver um trabalho essencialmente solitário e muito pessoal, em que a magia do cinema coincide com a sua capacidade de nos surpreender e de expandir os limites da nossa percepção face ao fluxo de imagens projectadas.


Joana Ascensão
27 de Abril de 2020

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