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Fazer explodir os quartos fechados

por Inês Sapeta Dias · 19 de Junho, 2020
El ángel exterminador (Luis Buñuel, 1962)

Em Novembro de 2015 a Cinemateca deu carta branca a Jean-Claude Rousseau para programar alguns filmes que acompanhassem os seus próprios filmes numa retrospectiva integral da sua filmografia. No primeiro dia desse programa houve duas sessões. Na primeira foram projectados os primeiros filmes do cineasta: Jeune femme à sa fenêtre lisant une lettre, de 1983, Venise n’existe pas, de 1984 e Keep in Touch (1987). E na segunda sessão, a primeira com um filme não de Rousseau mas escolhido por ele, foi visto El ángel exterminador, de Luis Buñuel (1962).

Aquilo que me faz hoje regressar a esse programa de 2015 terá afinidades com o movimento de tantos que hoje estão a regressar a El ángel exterminador, um dos filmes mais sugeridos nas listas que circulam pelos blogs de cinema ou um dos filmes mais programados nos primeiros ciclos de regresso às salas. Sim, de certeza que volto a pensar nesse programa de 2015 porque somos todos, hoje, uma espécie de contra campo grotesco ao olhar do grupo fechado dentro da casa do Buñuel e El ángel exterminador é um comentário ao mesmo tempo espantoso, delirante e assustador à experiência que temos vivido, fechados dentro nos nossos quartos apertados. Mas não é só por isso: é também por causa da sequência de filmes nesse programa da retrospectiva e carta branca a Rousseau. É por causa da programação: acho que só depois de ver El ángel exterminador me dei conta que os quartos do Jean-Claude Rousseau são quartos fechados.

Os primeiros filmes do cineasta instalam-se todos, de facto e literalmente, dentro de quartos fechados – é o caso dos três filmes vistos nessa primeira sessão da retrospectiva na Cinemateca. Há janelas por onde entram reflexos luminosos e sons de cidades estrangeiras – Veneza, Roma, Nova Iorque – às vezes há leituras de cartas e outros textos e um corpo que passa ou se instala (como aliás os próprios planos) em cada divisão como se não houvesse exterior e assim os reflexos, os ruídos, as vozes fossem não mais do que facetas desse interior. A este lado de objecto inteiro acresce o carácter de coisa palpável que os filmes do Rousseau também têm. Cada filme é uma espécie de bloco, conciso e delimitado, inteiro e tridimensional, que funciona como uma câmara (justamente, um quarto) por onde entram e passam luzes, sons, pequenos movimentos fluidos. “Câmara” é uma palavra chave: os filmes do Rousseau, muitos deles (sobretudo os primeiros) organizados então dentro e a partir de quartos fechados, são eles próprios como peças ou fragmentos de uma construção arquitectónica, que acabam por se instalar em paralelismo com a sala onde também nós, espectadores, estamos sentados. Cada filme do Rousseau demonstra que há uma relação especular entre a câmara que filma e a câmara onde se projecta. E esse paralelismo ajuda-me a explicar aqui as razões pelas quais digo que os filmes do Rousseau são como objectos, palpáveis e tridimensionais, e que está ligado ao modo como o cineasta se relaciona com aquilo que filma: Rousseau fala do quadro cinematográfico como qualquer coisa que se encontra e não como qualquer coisa que se constrói ou desenha. Essa descoberta – a descoberta do enquadramento que assim acontece à frente da câmara, não se decide atrás dela – essa descoberta, dizia, fica a arder, activa, nos seus filmes e acho que em parte é por isso que também os filmes ficam activos: são como canais, tubos, por onde as coisas passam. (E tenho que dizer que ouvir o Rousseau falar desta descoberta foi muito importante para o retrato de inverno de uma paisagem ardida que fiz pouco depois de ter visto pela primeira vez os seus filmes). Este carácter, de objecto inteiro, ajuda talvez a perceber que os filmes mais recentes do Rousseau, apesar de não se passarem em quartos, continuam a operar em circuito fechado.

Tudo isto para dizer que, apesar de nos darmos conta do quarto nos filmes do Rousseau não nos damos propriamente conta de que ele esteja fechado – ou eu pelo menos não pensei nisso até os ter visto com o filme do Buñuel. Acho que foi só aí, no momento dessa articulação, que me dei conta que os quartos do Rousseau estavam fechados. Isso aconteceu por causa de um movimento inesperado e paradoxal: vi o fechamento porque ele desapareceu. Ver o filme do Buñuel no meio dos filmes do Rousseau fez explodir os quartos fechados.

Só vemos que qualquer coisa está fechada se pudermos ver o seu exterior – se há filme aliás que me tem ocorrido com insistência nos últimos tempos (e mesmo se resisto à ideia) é o Benilde do Oliveira e acho que em parte é por causa disto de só ver que qualquer coisa está fechada quando se pode ver o seu exterior, mas já lá irei. Os reflexos e os sons dos primeiros filmes do Rousseau, apesar de aparentemente virem de fora, são todos interiores, confundem-se até às vezes com sons que imaginamos dentro da cabeça do cineasta – pequenos assobios, palavras repetidas como numa ladainha. Ao escolher El ángel exterminador Rousseau parece colocar-se no meio do grupo fechado dentro da casa, torna-se uma das personagens que nos olha lá de dentro. Essa escolha e essa articulação (esse programa) deu o exterior que os seus filmes não tinham. O filme de Buñuel é o fora de campo que expõe o fechado. É por isso que digo que o movimento desta articulação é paradoxal; e digo que é inesperado porque seria difícil de imaginar que um filme do Buñuel pudesse aproximar-se de um filme do Rousseau. E se é possível ver na sala de cinema os quartos do Rousseau, pelo seu lado mais arquitectónico, também é possível ver a sala de cinema no casarão do Buñuel, um casarão também ele instalado num circuito fechado e preso na repetição. Com a possibilidade de articular o aparentemente inarticulável – aquilo que a história e a teoria do cinema mantêm afastado – programar (pôr os filmes em sequência e dar-lhes ordem) permite rebentar com os quartos, com as casas ou com as salas fechadas.


Venise n’existe pas (Jean-Claude Rousseau, 1984)



Quando se fala disto – de programação e do que a história do cinema ensinou a manter afastado – lembro-me sempre do desejo de Jean-Luc Godard, expresso pela primeira vez quando substituiu Henri Langlois numa série de conferências no Conservatoire d’art cinématographique de Montréal, em 1979, o seu desejo de fazer uma história do cinema exclusivamente através do próprio cinema, uma história, diz ele, que pudesse mostrar aquilo que o cinema aprendeu a esconder (“Il faudrait peut-être montrer… l’histoire de la vision que le cinéma qui montre les choses a développée, et l’histoire de l’aveuglement qu’il a engendrée”). A primeira expressão desse desejo foi um programa de cinema: cada conferência de Godard em Montréal seguiu-se a uma projecção. Estas conferências estão transcritas e editadas no livro Introduction à une véritable histoire du cinéma (o “verdadeira” do título refere-se simultaneamente à nova história que Godard quer contar e à maneira como quer contá-la, especificamente cinematográfica).

Numa dessas conferências, depois da projecção de Bronenosets Potiomkine (O Couraçado Potemkine, Sergei Eisenstein, 1925), L’âge d’or (Luis Buñuel e Salvador Dali, 1930), Mr. Deeds Goes to Town (Frank Capra, 1936) e de La Chinoise (um filme do próprio Jean-Luc Godard de 1967 – Godard punha sempre um filme seu no programa e diz a certa altura estar a querer fazer uma espécie de psicanálise de si próprio no cinema); depois da projecção destes quatro filmes Godard diz o seguinte – que me parece ser tão lúcido para falar destes filmes em particular, como da sua programação e das razões que a levam (também ela) a ser inesperada, e da força da programação do cinema em geral (tento traduzir mas o original em francês segue no fim deste texto):

“Pus o L’âge d’or esta manhã apenas para colocar esta questão, uma vez que eram exemplos de filmes cujos realizadores, quando os fizeram, consideraram ser filmes políticos. E, precisamente, acho que os críticos de cinema não classificariam hoje L’âge d’or como filme político, quando provavelmente é o único filme que causou algum escândalo, e que ainda hoje tem, devo dizer, uma grande força, isto é, sente-se que há algo que muda, que pode mudar e que isso incomoda. É interessante passá-lo talvez apenas depois do Potemkine, na verdade pode ser um pouco engraçado. (…)

E as verdadeiras mudanças acontecem quando estas formas mudam, e as verdadeiras não-mudanças acontecem quando há palavras que mudam, quando dizemos socialista em vez de capitalista. O que é que realmente mudou? Isso é que é interessante.

Havia quatro exemplos, incluindo La Chinoise e, depois, um quinto exemplo de filme, que afirmava tratar a mudança de pessoas que querem mudar alguma coisa, e esse é o assunto do filme abordado através de um personagem ou dois. E vemos como isto foi tratado em momentos diferentes: pelos russos, por dois anarquistas espanhóis, um dos quais convertido ao franquismo depois disto, e um outro que se retirou para o México; depois, por uma espécie de idealista siciliano que foi um dos reis de Hollywood a certo momento; depois, nos filmes ditos clássicos, de que as pessoas dizem muito bem, como Z; depois, um pequeno filme como La Chinoise, realizado cerca de um ano antes dos acontecimento de 68, na França.

É nesse sentido que me interessa… bom, o cinema pode ser usado para isso, para ver a criação das formas, a embriologia… A embriologia é qualquer coisa extremamente misteriosa, que não se rege por leis. Tem menos leis que a biologia. Porque é que um pássaro tem um certo tipo de plumagem? Como é que alguns têm cabelos castanhos e outros têm cabelos pretos? Enfim, como se dá a criação das formas? E as pessoas são formadas, informadas e deformadas, e como é que, uma vez que existe uma forma fixa de filmar, isso se altera? Podemos chamar a isso uma revolução, uma inversão de marcha… ou uma espiral, como disse Mao Tse-Tung, faz-se uma espiral e é assim que as coisas mudam. (…)

Acho que a maneira como se conta a história – no cinema ou na televisão ou com as imagens – parece-me muito importante porque não é possível mentir. Para além de que não é preciso mentir; podemos fazer com que alguém minta, mas uma imagem é um facto, é um momento dum facto (não todo). O que pode mentir é a utilização…

A minha única intenção não é dizer qualquer coisa, a minha única intenção é ser capaz de fazer com que alguém diga qualquer coisa. A minha única intenção é filmar de uma certa maneira; não é filmar de uma certa maneira ‘para’; é filmar de uma certa maneira, o ‘para’ é… Para que aconteça qualquer coisa.”

Este “para” de que fala Godard – particularmente aquele “para” que ele descarta – relembra-me um dos mais estáveis princípios da prática da programação, que se tem mantido como regra ao longo da sua história: a importância de saber “para quem” se programa.

Voltei recentemente a um texto que escrevi há uns anos sobre programação – não sei aliás se foi esse regresso que levou a que me lembrasse desta carta branca a Jean-Claude Rousseau, ou se foi o tempo de suspensão (e o fechamento dentro de casa) que me levou a pegar outra vez nesse texto e a lembrar-me deste programa; seja como for dei-me conta de que esse fechamento e o assomar da hipótese do fecho das salas e da circulação dos filmes exclusivamente por sites, canais e outras plataformas online, talvez torne urgente discutir hoje o que é programar. Porque estamos todos ainda mais contidos dentro dos nossos quartos fechados e a programação organiza-se para nos manter lá dentro. Se é possível e fácil perceber que na história da programação há filmes que são programados com uns mas não com outros, que há filmes que são programados em horários certos, que há filmes que são programados em certas salas e outros que são programados noutras; que assim a programação cria caixas, conjuntos, e que a cada conjunto – correspondente a uma sala particular ou a um horário particular – correspondem conjuntos de espectadores; se é fácil perceber isto e perceber também como é raro o programa que rompe com essas caixas e abre espaços e cria possibilidades de outros cruzamentos, inesperados – do tipo daquele que Rousseau provoca na sua carta branca –, a circulação das imagens online ao mesmo tempo que pode ter o potencial de romper com essas caixas fechadas, tem ao mesmo tempo o potencial de as tornar mais apertadas (porque mais adaptadas). Se é uma velha (e quanto a mim muito problemática) questão de programação o “para quem” se programa – o desejo de ver e prever os potenciais espectadores – hoje, perante a hipótese que vimos de relance nos últimos meses, de as salas se fecharem e as imagens circularem exclusivamente por plataformas desenhadas para nós, a partir de nós, acho que se torna ainda mais urgente fazer perguntas a esse “para quem”. O algoritmo que, online, organiza sequências de imagens com base em leituras do nosso arquivo, parece fechar-nos num passado permanente, e desenhar um quarto à nossa medida – confortável, mas fechado e fixo. Penso então naquilo que se exige hoje a um programador. Ocorre-me a carta branca do Rousseau e o efeito explosivo que El ángel exterminador tem no meio dos seus filmes: faz explodir os quartos todos e relembra que não há surpresa se não houver exterior.

Para terminar (e deixar este texto em aberto) relembro então que em 1974, quando os cineastas portugueses foram filmar e festejar a rua, Manoel de Oliveira fechou-se dentro do estúdio da Tobis e filmou Benilde ou A Virgem Mãe. Aí, Oliveira filma o fechamento, o constrangimento mais terrível de todos, aquele que fica dentro, da cabeça e dos corpos. E apesar de ser impossível não ver em Benilde o país do Estado Novo, acho que é igualmente impossível não ver, com um arrepio, o que desse país ainda dura. Quando o país abre, então, Oliveira vai para dentro e filma o fechamento e esse é talvez, na relação com todos os outros filmes do seu tempo, um dos movimentos mais poderosos dessa revolução – a revolução nas formas, para pegar no que diz Godard: sem o fechamento que o Oliveira filma talvez não fosse possível ver a abertura, a mudança, que sacode o país (e entra no Benilde) como uma rajada de vento. E talvez Benilde, no meio dos seus contemporâneos, e visto agora, contaminado pelo presente, permita continuar a ver como é que um programa de cinema (no seu sentido mais lato) pode fazer explodir um quarto.


Inês Sapeta Dias

* Original da citação de Jean-Luc Godard (Introduction à une véritable histoire du cinéma)

J’ai mis L’âge d’or ce matin juste pour qu’on pose cette question, effectivement, puisque c’étaient quelques exemples de films, je pense, ceux que les metteurs en scène quand ils les ont faits, ont considérés comme des films politiques. Et justement, je pense que L’âge d’or ne serait pas classé aujourd’hui par les critiques de cinéma comme film politique alors que c’est probablement le seul film de cinéma qui ait fait un peu scandale, qui encore aujourd’hui possède, je dois le dire, une grande force, c’est-à-dire, on sent qu’il y a quelque chose qui change, qui peut changer, et que ça gêne. C’est intéressant à passer peut-être uniquement après le Potemkine, effectivement ça peut faire un peu drôle. (…)

Et les vrais changements, c’est quand ces formes changent, et les vrais non-changements, c’est quand il y a des mots qui changent, quand on dit socialiste au lieu de capitaliste. Qu’est-ce qui a vraiment changé ? C’est ça qui est intéressant.

Il y avait quatre exemples dont La Chinoise, et ensuite après, un cinquième exemple de film, qui prétendent traiter le changement de gens qui veulent changer quelque chose, et c’est ça le sujet du film à travers un personnage ou deux. Et on voit comment c’était traité à différentes époques : par les Russes, par deux anarchistes espagnols dont l’un s’est converti au franquisme après, et l’autre s’est retiré au Mexique ; ensuite par une espèce d’idéaliste sicilien qui a été l’un des rois d’Hollywood à une moment donné ; puis dans les films dits classiques dont les gens ont dit beaucoup de bien comme Z ; puis après un petit film comme La Chinoise qui a été fait environ un an avant les événements de 68 en France. (…)

C’est dans ce sens-là que m’intéresse… enfin, le cinéma peut servir à ça, à voir la création des formes, l’embryologie… L’embryologie, c’est quelque chose d’extrêmement mystérieux et qui n’est pas régi par des lois. Il y a moins de lois qu’en biologie. Pourquoi un oiseau a tel et tel genre de plumes ? Comment ça se fait qu’il y en ait qui aient des cheveux bruns ou des cheveux noirs ? Enfin, comment naît la création de formes ? Et les gens se forment et s’informent et se déforment, et comment une fois qu’il y a une forme de prise ça se change ? On peut appeler ça une révolution, un demi-tour… ou une spirale, sinon, comme l’a exprimé Mao Tsé-Tung, ça fait des spirales et c’est comme ça que les choses changent. (…)

Je crois justement que la manière dont on raconte l’histoire – ou le cinéma ou la télé ou les images – me semble assez importante parce que ça ne ment pas. Du reste, ça n’a pas à mentir ; on peut les faire mentir mais une image ce n’est qu’un fait, ce n’est qu’un moment d’un fait, ce n’est même pas tout. Ce qui peut mentir, c’est utilisation…

Moi, ma seule intention ce n’est pas de dire quelque chose, ma seule intention c’est d’arriver à pouvoir faire qu’on se dise quelque chose. Ma seule intention c’est de filmer d’une certaine manière, ce n’est pas de filmer d’une certaine manière pour ; c’est de filmer d’une certaine manière, le “pour” est… Pour qu’il se passe quelque chose.

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