
Com toda a probabilidade, a minha infância acabou em frente a Flying Down to Rio. Coreografias em cima das asas de aviões, uma enorme sala vazia e Fred Astaire só para nós. “Nós”: eu e uma amiga.
Ninguém sabia o que fazer destes miúdos numa cidade à beira do Índico, na costa oriental de África, quando as revoluções varriam o continente, reclamando o protagonismo da sua própria História, e um outro mundo se ausentava para os bastidores. Fazia isso todos os dias ao pôr-do-sol: um Boeing 747 levava quem se ia embora e deixava atrás de si casas vazias, carros estacionados sem dono, contentores com parte de vidas à espera de também serem embarcados.
E dois miúdos cada vez mais sozinhos.
Éramos dois. Como numa cidade abandonada dos filmes de cowboys, coisa que eu já sabia o que era. Com um vazio frio, estilizado, a cobrir tudo – como num filme de Jean-Pierre Melville, coisa que eu ainda não sabia o que era.
As noites tinham-se tornado longas e despovoadas. Para preenchê-las e tentar afastar os pressentimentos restava o cinema, tábua de salvação para estes dois miúdos e para os pais deles, que ali os depositavam e que duas horas depois ali os iam buscar.
O filme era de 1933 (realizado por Thornton Freeland). Mas não tinha passado. Parecia saído directamente daquele presente para dizer alguma coisa. Aquela alegria esfuziante sobre o Rio de Janeiro, Fred Astaire a cantar e a observar cá de baixo, de binóculos, as acrobacias aéreas lá em cima, e as asas dos aviões a servirem de palco a perigosos desafios às alturas e ao vento, tudo isso era uma despedida. E como eles se riam disso no ecrã!
Flying Down to Rio foi cruel. Também eu ia desaparecer.
Foi o último filme que vi em Quelimane, província da Zambézia, Moçambique. Onde dias ou semanas antes (mas isso de repente parecia atirado para o princípio dos tempos) fora comprar bilhetes para os meus pais irem ver O Último Tango em Paris (bilheteira do cinema Águia: “o menino sabe que não pode entrar no filme?”). Dando origem, na manhã seguinte, a um pequeno-almoço em que talvez tenha arriscado muito ao lançar um “e a cena da manteiga?”.
Ou quando, numa outra noite, escutara restos de uma conversa entre a minha mãe e o meu pai ao chegarem da sua habitual sessão de cinema. Ela mostrava-se espantada (mas também percebi que estava menos chocada do que interessada) pelo facto de pela primeira vez ter visto num filme um plano em que um actor aparecia nu. Havia vários em que actrizes apareciam nuas, comédias italianas, filmes suecos ou filmes alemães – um título ficou-me: Helga – que apresentavam o alibi de documentarem os mistérios do organismo, ou ainda filmes do Québec, como L’Initiation, que também explicava alguma coisa. Mas actores nus… Esse filme de que falavam era O Intruso, de Luchino Visconti.
Ainda houve Malícia, de Salvatore Samperi, que me fez passar várias vezes em frente ao cartaz em que espreitávamos, eu e Alessandro Momo, a cueca de Laura Antonelli que estava empoleirada numa escada de biblioteca.
Os primeiros filmes que me marcaram foram também esses que não pude ver porque não tinha idade para entrar (nem para o Bruce Lee e O Dragão Ataca, barrado à porta da sala apesar do pedido de várias famílias). Andei com eles na cabeça parte da minha vida.
O cinema, em mim, imprimiu assim: “coisa de adultos”. É por isso que um filme como A Pianista, de Michael Haneke, desencadeia um flashback, como a minha história íntima a correr em paralelo: sinto-me perante algo intimidante, um miúdo a concretizar a sua fantasia, o filme “de adultos”.
Os meus primeiros filmes foram também aqueles que o cinema ambulante trazia duas vezes por mês à vila entre a selva e o mar em que vivi antes de habitar a grande cidade. Eram projectados num telão branco do bazar devidamente esvaziado para a função. Era sempre uma surpresa saber que título nos calhava quando a carrinha do cinema atravessava a vila a anunciar a fita da noite. Calhou-nos o pastoso e lúgubre Django e nunca nos calhou Música no Coração, para decepção das senhoras daquele microcosmos burguês e colonial que se vestia à noite para o ritual (as maxi-saias eram o furor) e se armava com cadeiras de praia.
Assim se encenava o colectivo, criando a ilusão de uma comunidade. Retrato de grupo: os que ficavam lá atrás e não precisavam de cadeiras, os homens brancos e o seu poder de autoridade; depois as senhoras, e o seu pacto de reserva; à frente os miúdos e os que se sentavam no chão, a população negra. Os gritos vinham de todos, palmas para Ben-Hur, incitamento dos murros para Trinitá, o eco atirado à noite. Mas nada derrotava os mosquitos. E como iria perceber depois, naquele dia em que vi Flying Down to Rio numa sala vazia e numa cidade esvaziada, não era possível parar a História. A ilusão de que era assim que devíamos estar juntos desmoronava-se. O colectivo era pura ficção. Não era justo continuar.
O cinema iniciou-me às grandes esperanças. E ao grande fracasso. Uma sala de cinema contém para mim, ainda hoje, uma promessa. É uma solidão povoada. Entro com a melancolia. Não é a mesma coisa o laptop em casa. Não é ritual, não é experiência. É consumo, é utilitário e é sempre inofensivo. Não deixamos nada ali.
Há filmes que vi e que ainda hoje não sei que filmes são. Ficaram imagens fortes e às vezes armo-me em investigador de sinopses e de fichas artísticas e parto à descoberta. Suspeito que o filme que mais me aterrorizou, e que reavivou uma discussão em casa sobre se uma criança devia ir ver tudo – porque naquele bazar podia ver-se tudo –, era um giallo. Mas esse género é um mundo sem limites e a busca tem sido infrutífera. Até hoje. Não esqueci que havia um espírito vingativo, de nome Melissa, que regressava para cobrar. Eu sei, é excessivamente genérico. Mas se alguém puder ajudar…
Há um que me devastou tanto que ficou a manifestar-se dentro de mim durante décadas, prolongando o mal que me causara e deixando-me uma sequência a massacrar. Só anos depois, já tratando por “tu” nomes de realizadores e as suas obras, me cruzei com ela (ainda lhe chamo “a cena da árvore”) ao encontrar o filme. Não foi assim, na verdade. O filme é que um dia veio reclamar o que era seu: Incompreso, de Luigi Comencini.
A minha dieta de cinema italiano deve, aliás, ter sido enorme, mesmo se não me lembro de nada, de um filme de Mario Monicelli ou de um filme de Dino Risi, porque não teria idade para compreender o que via. Mas quando hoje mergulho nos anos 60 ou 70 dessa cinematografia até os móveis me falam, as casas, os carros e os bairros, reconheço as cidades antigas e os subúrbios novos. Encontro as minhas impressões digitais naquela esplêndida e generosa forma de olhar para a comédia humana que foi o gigante cinema popular italiano (hoje um grande desconhecido). Monicelli e Risi são hoje para mim dos maiores.
Por isso também que me comovem, porque estão a falar para a sala, para “nós”, Jacques Becker, ou o seu continuador Claude Sautet, Jean Renoir, Julien Duvivier ou Marcel Carné. Acreditaram numa grande esperança, falavam de solidariedade, de utopia e do grupo (quando as personagens de Sautet se metem dentro dos carros para selarem os seus pactos…), da sua resiliência. E dos seus fracassos.
É por isso também que invejo os espectadores do cinema americano dos anos 70. Eram adultos, não recearam o desconhecido, exercitavam a curiosidade como se fosse um dever cívico, não tinham medo de se magoar ou de se ofender (e de serem ofendidos), não procuraram no cinema um SPA emocional. Eram muito melhores do que somos hoje, aguentaram Persona de Bergman meses a fio nas salas portuguesas como quem se orgulha do confronto com uma dificuldade intransponível. Onde é que há isso hoje? Agora que penso nisso: que grande deve ter sido a solidão de Fred Astaire, Ginger Rogers, Dolores del Río e de Flying Down to Rio com as suas coreografias em cima das asas de aviões para uma sala vazia, algures em Moçambique 1975 ou 1976.
Vasco Câmara