
Há 35 anos, a Cinemateca Portuguesa apresentou um ciclo integral da obra de Jean-Luc Godard. Digamos que foi noutro Verão quente, o de 1985 – afinal de contas, a história também pode ser a história dos modos como repetimos ou refazemos os rótulos com que organizamos tantas e tão incautas memórias.
Começou no dia 27 de Maio, às 21h30, com uma sessão dupla: À Bout de souffle (1959) e Sauve qui peut (la vie) (1979). Terminou a 5 de Julho, às 18h30, com a apresentação de dois trabalhos em vídeo: os episódios finais (8 a 12) de France tour détour deux enfants (1980) e Introduction au scénario de Passion (1982).
Pelo meio, realizou-se uma especialíssima sessão cujas características nunca se terão repetido em nenhum outro lugar do planeta cinéfilo – é essa, pelo menos, a minha crença (sem qualquer prova informativa). Foi a 2 de Julho, às 21h30, integrando dois títulos de 1967: Made in U.S.A. e Deux ou trois choses que je sais d’elle.

Haveria, e há, muitas e boas razões para mostrar os dois filmes em conjunto. Sabemos agora que definem uma espécie de cortina crítica entre os ensaios, contundentes e poéticos, dedicados à sociedade de consumo (desembocando, um ano antes, em Masculino Feminino, sobre “os filhos de Marx e da Coca-Cola”) e os títulos que, entre premonição e observação, dão conta da França assombrada pelas convulsões cujo ponto de fuga seria Maio de 1968 (incluindo, claro, esse outro filme de 1967, “encontrado no ferro velho” e “perdido no cosmos”, que é Week-End).
Mais do que isso: Made in U.S.A. e Deux ou trois choses que je sais d’elle espelham-se mutuamente, desenhando uma insólita, mas luminosa, simetria. Dir-se-ia que o primeiro consuma uma cerimónia fúnebre dedicada ao experimentalismo da Nova Vaga: na altura, Godard definiu-o como um “filme de Walt Disney com sangue”. O segundo arca com o peso da revolução formal dos anos anteriores e, com alguma ironia política, podemos considerar que dá um passo em frente: o mundo da acção já não possui qualquer relação nostálgica com o imaginário cinéfilo, a sociedade é vista como “coisa” monstruosa que arrasta, arrasa e, de algum modo, comercializa todas as ilusões individuais; o título, aliás, ambiguamente romanesco, remete para uma figura feminina (“elle”) que é tão só… a região parisiense.
Podemos dizer tudo isto de modo diverso, porventura sugestivo, sublinhando as diferenças de pose de Anna Karina e Marina Vlady: em Made in U.S.A., Karina emerge ainda como rosto cândido de um visual sempre marcado pela sedução da Pop Art; em Deux ou trois choses que je sais d’elle, Vlady luta por resistir à envolvência dos novos cenários suburbanos, levando-nos a reconhecer como a paisagem social das cidades em crescimento se vai organizando contra as singularidades do factor humano.

Enfim, todas estas considerações servem para enquadrar a tal sessão dupla, mas, como é óbvio, não explicam a sua proclamada raridade. A diferença era outra, e de outra natureza: por uma vez, a sessão dupla não apresentou os filmes pela sua ordem “natural”.
Que se passou, então? Acontece que, por razões de financiamento e organização de trabalho, Made in U.S.A. e Deux ou trois choses que je sais d’elle foram rodados um a seguir ao outro, por assim dizer, em continuidade. Mais do que isso: os respectivos trabalhos de montagem decorreram em simultâneo. Godard encarava-os como “filmes gémeos”, a ponto de ter sugerido que poderiam ser apresentados numa mesma sessão, “reproduzindo” as condições da sua gestação. Que é como quem diz: uma bobina do primeiro, outra do segundo, de novo uma do primeiro, depois mais outra do segundo…
Resumindo: a Cinemateca Portuguesa tomou as palavras de Godard à letra e, já depois do ciclo ter apresentado os dois filmes em momentos diferentes, na sessão da noite de 2 de Julho de 1985, ali mesmo no nº 39 da rua Barata Salgueiro, Made in U.S.A. e Deux ou trois choses que je sais d’elle foram vistos, ao longo de três gloriosas horas de projecção (90 m + 90 m), com as bobinas “trocadas”.
Ainda hoje não sei explicar muito bem o que aconteceu. Talvez por isso mesmo a memória da sessão apresenta-se numa contraditória intensidade, nítida e volátil. Escusado será dizer que não se tratava de descortinar um qualquer “significado” suplementar através da alternância de bobinas. Além de que os organizadores (e, por certo, os espectadores) da sessão sabiam que aquela era uma “experiência” excepcional que ninguém encarava como a instauração de um novo modelo de apresentação dos filmes.
Assistiu-se a uma verdadeira “colagem” de fragmentos de filmes, de alguma maneira ainda decorrente da sedução da Pop Art que Godard tão conscientemente integrou, sobretudo em Made in U.S.A. (embora por Deux ou trois choses que je sais d’elle perpasse a ideia de que os novos conceitos de urbanismo podem obedecer a outra estética de “colagem”, sobretudo arquitectónica, que já não integra o indivíduo como princípio irredutível). Como se estivéssemos perante um bloco-notas de hipóteses em que o cineasta se revê e repensa, reformulando as atribulações de uma peculiar dialéctica.
Os filmes parecem “explicitar” tal dialéctica, definindo um capítulo mais de uma lógica visceralmente auto-biográfica. Assim, no princípio da sessão, isto é, no genérico de Made in U.S.A., lemos esta dedicatória: “Ao Nick e ao Samuel que me educaram no respeito da imagem e do som” (lembremos: Nicholas Ray e Samuel Fuller). E no final de Deux ou trois choses que je sais d’elle, quer dizer, a concluir a sessão, escutamos a voz off ciciada do próprio Godard, espécie de anjo da guarda de todo o filme, dando-nos conta de um voto filosófico que se confunde com um renovado programa de trabalho: “Esqueci tudo, a não ser que, uma vez que me reconduzem ao zero, é daí que será preciso recomeçar.”
Com o passar dos anos, a memória de tal sessão dupla foi sendo inevitavelmente tocada pelas alterações mais ou menos brutais que têm atingido a difusão do cinema – entenda-se: a relação específica do espectador com o filme. Desde logo, porque o (des)conhecimento do cinema passou a ser feito através de uma delirante fragmentação, YouTube e outras feiras “sociais”, bem diferente do exercício lúdico, isolado, não normativo, de assistir a dois filmes de Godard alternando as respectivas bobinas.
Há mesmo agora toda uma cultura da fragmentação que, em boa verdade, já nada tem a ver com a metodologia que encarava (e estudava) o fragmento como sintoma e fantasma de um todo sempre impossível de esgotar – lembremos Roland Barthes, claro, a sua paixão pelo fotograma (o célebre texto “O Terceiro Sentido”, publicado em 1970 nos Cahiers du cinéma, tem como subtítulo: “Notas de pesquisa sobre alguns fotogramas de S. M. Eisenstein”) e o seu livro Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977).
A nova cultura, predominantemente audiovisual, conduzida por uma moral “redentora” do consumo que não conhece outro valor que não seja a gratificação imediata e pueril, foi sendo consolidada através de um crescente menosprezo pela densidade (figurativa, simbólica, etc.) que a imagem pode conter – aliás, que a imagem é.
Qual, então, o valor que passou a atribuir-se à imagem? Apenas o que decorre da sua compulsiva brevidade. Será preciso acrescentar que estamos a assistir ao massacre da cinefilia pela cultura dominante dos clips “acelerados” das mensagens publicitárias? Nos seus formatos mais banalizados, inclusive no trabalho jornalístico, o clip é a apoteose dessa brevidade e da sua ignorância de tudo aquilo que o fragmento pode “resumir” e intensificar. A saber: o prazer da duração.
Vivemos um tempo de crescente menosprezo pela duração, sendo a duração aquilo que liberta o tempo da sua quietude ontológica, fazendo-o reviver como narrativa. Ao contrário do que sugere muitas vezes o senso comum, a duração não é a escolha da “lentidão” contra a “velocidade”, antes o reconhecimento de que o tempo não se esgota em qualquer medida linear. A duração é, enfim, o tempo virado do avesso, porque discutindo as suas próprias medidas – e isso é válido tanto para um rapidíssimo fogacho visual de Eisenstein como para um plano sequência filmado por Hitchcock.
Ao propor a descoberta de Made in U.S.A. e Deux ou trois choses que je sais d’elle através de outra duração, que não aquela que cada um deles edifica e transporta, Godard enunciava já uma hipótese que, afinal, ele próprio veio a trabalhar como ninguém. As suas geniais História(s) do Cinema (1989-1999) não serão também a abertura de um outro sistema de durações para a memória histórica dos filmes e, nessa medida, o projecto de um pensamento novo para o nosso tempo videográfico e digital? Eis uma guerra cultural que importa continuar a travar: a do cinema como exército do tempo, amante da duração.
João Lopes