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Movies on My Mind

por Vasco T. Menezes · 29 de Maio, 2020
Big Wednesday (John Milius, 1978)
Big Wednesday (John Milius, 1978)

Meados dos anos 90, meados da minha adolescência: a minha primeira vez na Cinemateca foi com o Serial Mom / Mãe Galinha (1994) de John Waters. Envolto nas brumas da memória, nada disto é absolutamente certo, o que, no fundo, pouco importa – “print the legend”, não é assim?

O que é seguro é que a tresloucada mamã de Kathleen Turner (saudades!) não ficou sozinha. O regresso de autocarro, a caminho do Lumiar com o meu primo Ricardo e o nosso camarada Paulinho, após o Frenzy / Frenzy – Perigo na Noite (1972) de Hitchcock, sem que a sequência do cadáver nu no camião das batatas me saísse da cabeça, ou a errância nocturna e solitária pelas ruas de Telheiras a emular o périplo sem rumo do protagonista do Permanent Vacation / Sempre em férias (1980) de Jim Jarmusch, a que tinha acabado de assistir, são recordações indeléveis desse período, tal como a sessão “participativa” do The Rocky Horror Picture Show / Festival Rocky de Terror (1975) (continuo sem perceber o fenómeno).

Para trás ficava uma infância rodeada de filmes. Antes de me tornar cinéfilo, já era um “cine-filho”. Entre as cassetes (primeiro Beta, depois VHS) que forravam as paredes lá de casa e que se consumiam ao “rapar” avidamente as prateleiras dos videoclubes e o privilégio de poder ter testemunhado os últimos estertores das grandes “catedrais” – Éden, Condes, São Jorge, Tivoli, Alvalade, mas sobretudo Roma e Império – e o desaparecimento de um sem-número de cinemas de bairro (saudosos Berna, 7ª Arte, Estúdio 444, Apolo 70, Alfa, Star ou Londres), coordenadas geográficas de um património afectivo, foi-se construindo uma história de amor. Que conheceu uma extensão marcante do outro lado do Tejo, via Festroia (de que o meu pai foi director), onde às “cinematografias periféricas” (encontro traumático com o Vem e Vê [1985] de Klimov) e aos “independentes americanos” (Drugstore Cowboy / No Trilho da Droga [1989] e Night on Earth / Noite na Terra [1991] ou a descoberta de Gus Van Sant e Jarmusch) se somava o convívio de um petiz com as stars (ainda e sempre) cintilantes do firmamento clássico hollywoodiano: Lauren Bacall, Jane Russell, Kirk Douglas ou Robert Mitchum (o choro deste quando, algures em Grândola, deixaram cair ao chão uma garrafa de vinho nada teve de underacting…).

A este deslumbramento inicial, a entrada na Cinemateca veio contrapor o “refinamento” de uma cada vez mais magnificent obsession, com a crescente percepção do fascínio do cinema enquanto arte possuidora de uma história e mitologia próprias, feitas de um contínuo vaivém entre passado e presente, ecos e vasos comunicantes, espelhos e reflexos, variações e inversões. Por trás de cada porta aberta, havia outra, e outra e… A velhinha Félix Ribeiro passou a ser (a par do Quarteto e do King) “a” sala, segunda casa e espaço de devoção onde, no escuro, se experimentavam e partilhavam delírios, sonhos, fantasmagorias, inquietações, fantasias e medos projectados naquela tela mágica. A rampa que dava acesso ao “santuário”, a pequena bilheteira envidraçada, as “folhas” que começaram a ser religiosamente guardadas e aquela sala inclinada, cenário de múltiplas descobertas e novas paixões… O Cul-de-sac / Cul-De-Sac – O Beco (1966) de Polanski a digladiar-se com o Badlands / Os Noivos Sangrentos (1973) de Malick, a fila interminável para o Vampyr / Vampiro (1932) de Dreyer e o primeiro ciclo que me lembro de querer seguir, “50 Anos do Actor’s Studio”, por culpa de ter ido com a minha mãe ver a desconstrução muito seventies dos códigos do noir do Night Moves / Um Lance no Escuro (1975) de Arthur Penn. E, de repente, o milénio já não era o mesmo e a Cinemateca também não: “A Última Sessão”, requiem por uma sala, celebrado efusivamente – The Tingler (1959), do mestre da série B William Castle, ou o cinema a brincar consigo próprio, o meu adorado Vincent Price a avisar os espectadores do “filme dentro do filme” que esse estranho cruzamento de lagosta com centopeia andava à solta pela sala e eu quase a jurar sentir também o choque eléctrico na cadeira do gimmick inventado pelo incorrigível showman que um dia quis ser Hitchcock.

Corte para um exílio na “casa de partida” do Salão Foz, e que maravilhoso exílio! O desencanto do Bitter Victory / Cruel Vitória (1957) do grande poeta da modernidade do cinema americano, Nicholas Ray; a frieza kubrickiana temperada por um humanismo desesperado num dos mais belos filmes anti-guerra de sempre (Paths of Glory / Horizontes de Glória [1957]); uma sala a rebentar pelas costuras e quase a rebolar de riso com a anarquia subversiva dos Marx na obra-prima da sua fase mais indomesticável, Duck Soup / Os Grandes Aldrabões (1933); Claudia Cardinale a apresentar a súmula operática do western segundo Leone que é o C’era una volta il West / Aconteceu no Oeste (1968); as visões lancinantemente encantatórias da infância no Curse of the Cat People / A Maldição da Pantera (1944) de Robert Wise e no El espíritu de la colmena / Espírito da Colmeia (1973) de Erice (logo a seguir, correria até ao Garage para um concerto dos Dead Kennedys, com – nem de propósito – um ex-child actor, Brandon Cruz, a substituir o insubstituível Jello Biafra); o piano ao vivo a embalar a pungência do sofrimento do The Phantom of the Opera / Fantasma da Ópera (1925) encarnado pelo inesquecível “homem das mil caras” que foi Lon Chaney, e eu a ser embalado também pelo onirismo hipnótico d’A Bela e o Monstro (1946) de Cocteau, meio visto e meio sonhado; João Bénard da Costa a contemplar do balcão, incrédulo, as sevícias perpetradas pelo godfather of gore Herschell Gordon Lewis no inenarrável Blood Feast (1963) (um dos módulos do glorioso ciclo “Cinema e Pintura”, a transbordar de obscuridades exploitation e série Z, de Ed Wood a Pete Walker, misturadas com Stan Brakhage e Abel Ferrara, noutro momento inolvidável: João Ribas, lenda [imortal?] de Alvalade e do punk nacional, a desbundar na fila à frente da minha com a ode punk à Manhattan pré-gentrificada do The Driller Killer [1979]); Ciprì e Maresco e a selvajaria do seu zoológico humano; e… DOUGLAS SIRK.

Regresso à renovada Barata Salgueiro, com o crescimento da Cinemateca a acompanhar o meu (ou será ao contrário?), já com os dois pés no “mundo adulto”. O dobro das salas, o dobro dos prazeres, numa intensificação de um ritual que era já segunda natureza: aguardar, ansiosamente, pelas maravilhas que esconderiam os programas mensais, salivar com a perspectiva de novos “heróis” poderem vir a suplantar outros até aí incontestados e atafulhar de pedidos aquela generosa “caixinha dos desejos”… Foi na Cinemateca que aprendi a amar verdadeiramente o génio sibilino de Lubitsch, Sturges ou Wilder e a ver (literalmente) com outros olhos os gigantes que antes estavam reduzidos às dimensões de uma TV, da intemporalidade dos mestres clássicos à revolução dinamitadora dos movie brats. E foi também aí que passei a tratar por tu gente ilustre como Fritz Lang, Max Ophüls, Luis Buñuel, Roberto Rossellini, Jacques Tourneur, Tod Browning, Pasolini ou le gros Bob, Robert Aldrich (para quando um The Choirboys / Os onze Implacáveis Meninos do Coro [1977]?).

Desfilam-me pela mente, cenas de um filme sem fim, memórias que se atropelam umas às outras: as retrospectivas e/ou integrais de vários “mais-que-tudo”, Carpenter à cabeça (e, acabadinho de chegar de Nova Iorque, o jet lag a levar a melhor sobre a vontade de conhecer a “peça do puzzle” que me faltava, Someone’s Watching Me / Alguém anda a espiar-me (1978), acordando ainda assim a tempo de me arrepiar com o “you got too close” final de Lauren Hutton), mas também Peckinpah, Eastwood, Ray (as torradas na minha avó antes de partir para a aventura com os esquimós do The Savage Innocents / Sombras Brancas [1960]), Huston, Hellman (maverick dos mavericks), Corman (e o “Papa” a honrar-nos com a sua presença) ou Terence Fisher (e as “fugas” da redacção do Público perante a ameaça de perder mais uma dose de barroquismo sensual); Fuller e toda a energia, mais inebriante do que qualquer cigar, do seu cinema “primitivo”; os ciclos “enciclopédicos” dos anos 60, 70 e 80 e os seus posteriores (e inestimáveis) “lados B”; as maratonas para fazer jus ao fôlego épico da versão restaurada e integral d’As Portas do Céu (1980) (com Cimino himself ali mesmo ao lado) ou do lamento de Spike Lee por uma cidade (eternamente?) devastada, Nova Orleães, no magnífico When the Levees Broke (2006-2007); as pérolas trash desse ciclo que juntou Russ Meyer, Doris Wishman ou Al Adamson a um “monumento” da bizarria chamado Thundercrack! (1975), variação da casa assombrada em modo queer-underground-porno-horror; double bills propositadas (Chabrol e De Palma; os magistralmente “sonâmbulos” Crash [1996], de Cronenberg, e Into the Night / Pela Noite Dentro [1985], do seu grande amigo John Landis) ou espontâneas (Renoir e Jess Franco ou o “duro” Franco Nero do Django 2 [1966] seguido do “ambivalente” Pacino do Cruising / A Caça [1980]); as meias-noites “malditas” violentado pelas pulsões ambíguas desse Friedkin ou pelos frissons pagãos do The Wicker Man / O Sacrifício (1973) original (depois de um saboroso jantar com Ken McMullen, inusitado companheiro de sessão); mergulhar na elegante tensão urbana do Thief / O Ladrão Profissional (1981) de Michael Mann saído da praia; as delícias e perversões do giallo (Bava, Freda, Margheriti, Fulci e demais artesãos do cinema “de género” à italiana) ou os zombies (de Romero a Sam Raimi, passando por… Pedro Costa) a tomarem conta da Esplanada num quente mês de Setembro; e aquela mítica sessão para um mítico filme (“In the old days, I remember a wind…”), que é também o meu título de cabeceira – o Big Wednesday / Os Três Amigos (1978) de John Milius, numa big Friday, 13 de Julho de 2007, nada aziaga (“Em havendo surfistas na Esplanada, esta sessão é para eles”: ainda hoje me lembro do começo dessa “folha”), com uma série de amigos não à volta da fogueira na praia mas velados pelas estrelas do céu da Barata…

Um percurso (já com um quarto de século) forçosamente pessoal – a cada um a sua Cinemateca, afinal de contas, o mais bonito de tudo –, mas transmissível: esta história é também a de quem tem estado comigo ao longo dos anos. É pensar em todos os amigos que já arrastei sempre que um “O Que Quero Ver” meu (ou talvez não) calha ser escolhido, é pensar na Kat a virar-se para mim quando a “Wonder Wheel” de Coney Island começa a piscar, etérea, no plano de abertura dos The Warriors / Os Selvagens da Noite (1979) de Walter Hill (“can you dig it?”; claro que sim!), oferecidos pelas “Poéticas do Rock” do Sebastião, comparsa de tantas screwball comedies mas também de refugo com a sala só para nós (Eye of the Tiger / O Olho do Tigre [1986] ou Gary Busey forever, Renegade (1987) e um adorável canastrão, Terence Hill); na Pilar, outra admiradora da idade de ouro de Hollywood, escandalizada com a apropriação fassbinderiana, muito pouco straight, do melodrama à Sirk n’O Direito do Mais Forte à Liberdade (1975); no Dinner at Eight / Jantar às Oito (1933) com a Luísa, pelo qual agradeço a Cukor todos os dias; na Clara e na Catarina enfeitiçadas pelo patibular, mas bonitão Michael Paré do Streets of Fire / Estrada de Fogo (1984) (outra vez Hill) ou a Cátia a repetir dias a fio o “Tom Cody, pleased to meet ya” dirigido ao “lobo mau” Willem Dafoe dessa fábula vibrantemente retro-futurista; e, claro, nas muitas “folhas” mostradas à minha avó, outra inveterada cinéfila que teve a sorte de ver, em primeira mão, muitos desses filmes nas suas Caldas da Rainha, nos tais “palácios” que já não voltam…

O filme da minha vida na Cinemateca confunde-se com o filme da minha vida. Oxalá o retomem depressa.


Vasco T. Menezes

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