
A primeira vez que vi Rentrée des classes (1956) de Jacques Rozier, meti-o logo no peito. Levava-o a toda a parte, este pedaço de maravilha, sempre intocado a revolver as entranhas. O cinema a caminho da Nouvelle Vague, a ária da Rainha da Noite da “Flauta Mágica” de Mozart a acompanhar a água do rio onde o menino se banha, filtrada pela esplendorosa luz solar. Poucas vezes o cinema atingiu esta comunhão em que as palavras tentam, resvalam e não alcançam descrever. Anos depois, dei-me conta que o início daquele filme era o começo da minha relação com a Cinemateca Portuguesa. Não porque lá tivesse visto o filme, mas sim porque o gesto inaugural coincidia. Eu era aquela criança que, na iminência de mais um enfadonho dia de aulas, lançava a mochila ao rio e me escapulia para outro mundo. No meu caso as aulas eram de Direito e o rio as duas sessões diárias da Barata Salgueiro. Com o tempo a Cinemateca foi sendo muitas outras coisas, mas começou por ser isso para mim: um espaço de evasão e descoberta. A seguir aos VHS do final dos anos 80, e das “Cinco Noites, Cinco Filmes” na RTP2, as idas à Cinemateca (e ao cinema King) tiveram o condão de ser esses “momentos privilegiados” de uma cinefilia em formação.
Hoje, a Cinemateca está fechada. Assim como as demais salas do país, apagadas. Os cinéfilos trancados fora delas. O momento não é bonito, mas o povo está vivo, e vê e escreve e pensa. Com a pandemia e paragem forçadas, podemos e devemos reflectir sobre esse apagão, uma espécie de escuridão literal e indesejada, mas que corre o perigo de encadear. Em tempos de mudança – menor ou maior – desconfio sempre de abordagens “vai ficar tudo bem”; assim como as que estão nos seus antípodas, “o fecho das salas de cinema são a machadada final no que já estava moribundo”. E, sobretudo, nem desejo o “novo normal”, nem o “regresso ao que tínhamos antes”. O que me parece é que não, nem tudo vai ficar bem – já não o estava antes, porquê agora subitamente? –, nem tudo está irremediavelmente perdido. Há que aproveitar a mudança para melhorar, reforçar os laços da comunidade, corrigir erros e abraçar a luta contra uma eficácia que atinge todos os domínios da existência – à cabeça a económica – e que a todos cega.
Para tentar explicar-me um pouco melhor, volto ao “meu” Rozier e ao filme Rentrée des classes. Nesse gesto fundante da cinefilia de que falava – representado pelo mandar a mochila ao rio e faltar às aulas – há dois detalhes que não percebi na altura e que me parece vitais hoje. Ambos irremediavelmente ligados. Por um lado, como dizia Godard, este é o filme da “desobediência civil”. Mas alargue-se a comparação, pois há no cerne do cinema esse mesmo acto insubmisso, que resiste a domesticações (de formatos ou “experiências” essenciais, por exemplo). O bom cinema, em certo sentido, é o mau cinema. É um cinema livre e selvagem, que resiste a uma apropriação normalizadora dos conteúdos e sensibilidades, dos modelos de negócio ou formatos de visualização. Por outro lado, nesta minha comparação com a cena em Rozier, outro detalhe é importante: a de sair de uma sala de aula para me meter, no meu caso, noutra sala, a de cinema. Mas alargue-se a comparação novamente, pois o herói de Rozier também ele escolhia outra sala: a “sala da natureza” e seus recreios.
Começo por falar desta transição entre salas. Penso que é um inegável facto histórico dizer que a experiência primordial do cinema – aquela que a Cinemateca procura reproduzir e manter como registo museológico – é o visionamento de um filme numa sala escura, perante um conjunto de espectadores diante de uma tela. Assim como é inegável perceber que a transformação tecnológica veio sucessivamente ajudar a construir novas e coexistentes relações com o cinema, e seus fiéis seguidores: os cinéfilos “filhos da televisão”, do VHS, do DVD, e agora do VoD, do streaming e da partilha de filmes em ambiente digital. Evidentemente que está em causa, em primeiro lugar, uma luta pelo poder económico: cada modelo de negócio irá tentar constituir-se à volta do que nomeará ser o cinema na sua essência, na sua experiência “pura” ou “impura”, e arrastar com ele um cânon, do “bom” cinema, de uma distinta ou moderna forma de ver e de viver.
Contudo, creio estarmos demasiado presos (ainda) a uma querela de dispositivos quando convém reflectir sobre as condições que sempre vão tornando a experiência artística possível. O que significa afinal a tão desejada sala de cinema, esse templo de culto sob o qual todo um universo de actividades e experiências se constituiu, ao ponto de modelar decisivamente a identidade do século XX? A sala, em meu entender, é uma abstracção. Mas foram as salas físicas que tiveram (têm) o condão de nos fazer compreender melhor – de forma visível – como um conjunto de imagens em movimento, para serem vividas como coisas únicas, irrepetíveis, especiais e diferenciadas precisam de um ritual de separação. No caso das salas de cinema, é a sua arquitetura que impõe a separação física, temporal, corpórea. Mas… que dizer dos ávidos cinéfilos coleccionadores de DVD, que quitam as suas salas e quartos para mimetizar esses mesmos rituais de separação? Ou dos cinéfilos do streaming que, de headphones postos, só vêm à tona após a palavra the end nos seus portáteis?
Por isso, creio que, além dos modelos de sobrevivência negocial que concorrem hoje entre si – uns ganhando, outros perdendo terreno – a luta pelas salas de cinema é, ou deveria ser, encarada como um símbolo da luta pelos rituais de separação e atenção. É nesse sentido que devíamos repensar que parte do problema do cinema é não conseguir criar e manter as suas salas, mesmo imateriais. Podemos dizer que o streaming oferece precisamente isso: a ideia de sala virtual. Contudo, uma vez que o seu funcionamento é feito através do computador e da ligação à internet, ele acaba por sucumbir a um ambiente cuja lógica que prolifera é precisamente contra essa ideia de diferenciação e separação. No mundo digital, as realidades são todas codificadas e colocadas no mesmo espaço. E, nesse sentido, existe a priori uma certa noção irremediável de indiferenciamento, sob a qual é preciso constituir diferença, afecto, unicidade. E esses conteúdos são tornadas disponíveis ao manuseamento e consequente possibilidade de união entre si. A rede pressupõe a ligação constante entre tudo e a anulação progressiva da capacidade de separar as diferentes realidades. Trabalho e lazer, arte e informação, redes sociais e profissionais. Tudo a todo o tempo, catatonicamente, alternado ou em simultâneo, em constante multitasking. O problema não é a possibilidade de ligar, mas a impossibilidade de separar. De constituir rituais de separação.
De certa forma, o preço a pagar – por enquanto pelo menos –, à maravilhosa capacidade de acedermos todos democraticamente e em todo o lado (ou em teoria assim será) a um conjunto de filmes e outras obras incríveis produzidas pela humanidade é que elas se encontram num grande repositório que as trata como conteúdo mais ou menos indiferenciado. É por isso que a experiência de visionamento de um filme – na sua continuidade, seja em casa seja na sala física – se torna uma experiência cada vez mais difícil, de pára-arranca, de amnésia, do “o que é que era aquilo?” ou “o que é que ele disse mesmo?” A separação que a sala de cinema produzia e que canalizava a nossa atenção foi substituída por um despenhamento de micro-salas – as janelas do mustitasking – nas quais o utilizador não é incentivado a permanecer, mas a percorrer sem cessar. John Ford 5 minutos, sinal sonoro do Gmail, pop up, scroll no Facebook, Ford mais dois minutos, consulta da Wikipedia, etc. A internet acolheu o cinema como conteúdo, e ao colocá-lo em rede, submeteu-o à sua lógica: o que outrora era contínuo e separado da realidade, agora é interrupção como forma dominante de percepção e submetido a gesto de constantes ligações com outras experiências online.
Admito que a um cinéfilo da velha guarda tudo isto pareça repugnante. Admito que a um cinéfilo da nova guarda tudo isto pareça uma fantasia, uma questão de “disciplina”. Se já a televisão tinha “indiferenciado” o cinema – e a crítica muito o sublinhou na altura – agora o cinema parece ter sido ensopado definitivamente neste indistinto caldo de scrolls e clicks infinitos e pulsionais. Contextos, olhares críticos, distanciamento, identificação e emoção, como mantê-los? A manutenção do cinema é, no fundo, a manutenção de uma certa estrutura e ritual de distinção entre coisas para o nosso quotidiano. A sala de cinema – física ou virtual – é um problema que encaixa no desafio mais vasto do digital: o da manutenção das nossas “salas” de separação e atenção diárias. Para que o tempo não passe amorfo, indistinto, sem valor. E com ele, o desvanecimento da emoção, da memória e da acção.
A mesma questão com a ideia de comunidade. A ida à sala de cinema torna, para o bem e para o mal, a experiência em algo única e diferenciado. A presença física sempre foi – e hoje parece que o compreendemos claramente – uma afirmação política: “eu estou aqui!”, “Não em qualquer parte, não noutro lado. Aqui. E com vocês. A escolha é minha.” A construção de comunidades digitais também enfrenta o mesmo problema. Como conceber espaços únicos, indiferenciados, onde a ideia de estar tudo disponível e online não seja apenas ruído e devore a possibilidade da experiência de cada coisa, sua partilha e discussão? O desafio do cinema e suas comunidades no digital é, em suma, a de ir encontrando espaços diferenciados e rituais mais ou menos protegidos da constante tempestade de informação que sobre todos nós se abate “24/7”. Em rede, mas que mantenha viva – e não destrua – a vontade de ver os filmes, discuti-os e amá-los.
Termino com um elogio da escuridão. Assim, como creio ser redutor tomar a sala de cinema apenas como local físico, a escuridão também não é apenas a que associamos àquelas salas. Claro que essa escuridão representa o nosso invólucro negro, no centro desse ritual de separação sob o qual o cinema se constituindo como experiência do comum. Era parte da sua “aura” que, estando à nascença perdida, resplandece hoje de forma elegíaca, numa espécie de irónico post mortem. Mas, para mim, a escuridão da sala de cinema sempre foi uma coisa mais: um símbolo do espaço no qual podemos lutar contra a devoradora e encadeante eficiência económica. Ao contrário desta, onde tudo deve estar à luz – e ser claro, compreendido, categorizado, medido, previsto – a escuridão é a aceitação de que há coisas que dão luta porque não as compreendemos, é o espaço da resistência à definição clara, é o abraço da dificuldade que faz crescer. Se a luz eficiente faz mover o mundo, a escuridão ineficiente faz mover o mundo interior. Porque falo nisto? Porque a eficiência, muitas vezes cega, é, em certa medida, o inimigo da arte. E como é essa eficiência que rege os paradigmas do avanço tecnológico, resta à arte fazer o que sempre fez: encontrar o grão na engrenagem, a imagem subtil ou obscura da resistência.
Acontece que o cinema habita e prolifera nessa escuridão. Nesse sonho comum de algo que sempre parece impossível. E é essa escuridão que temos de continuar a reclamar como espaço nosso. Os nossos rituais de separação e diferenciação na gestão do tempo – que é como que diz, do nosso cinema portátil – precisam desse espaço abrigado da luz da certeza, desse momento ínfimo do dia em que nos ouvimos pensar. Antigamente chamava-se “estar a sós com os seus botões”. Hoje talvez se chame simplesmente ser livre.
Carlos Natálio
Maio de 2020