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Sala de Projeção
Textos

Notas da sala de aula – ensaio para um cinema do encontro

por Pedro Florêncio · 25 de Maio, 2020
John Ford

Fort Apache (John Ford, 1948)



“No momento do encontro, contentamo-nos em registar a surpresa do enigma e a responsabilizá-lo pela força do choque e da angústia que sentimos. O processo de elucidação só virá mais tarde, podendo mesmo durar vinte, trinta anos ou toda uma vida. O filme trabalha em nós silenciosamente, as suas ondas de choque espalham-se lentamente.”

Alain Bergala (The Cinema-Hypothesis, 2006)

A projecção de um filme – qualquer filme – no contexto de uma sala de aula é estranhamente imprópria. Por um lado, porque as condições de exibição ficam sempre aquém da boa vontade de se semear o desejo. (Há sempre algo de alheio que nos escapa: um ficheiro de legendas que o software instalado no computador da sala teima em não abrir, uma desconfiguração dos formatos no projector que o professor da aula anterior utilizou, uma coluna de som que deixa de funcionar, uma caneta que teima em cair das mãos de um aluno e rolar pelo chão). Por outro lado, porque, mesmo quando se sacrifica o parco tempo de uma aula sobre cinema para se exibir um filme na sua integralidade, mesmo quando se abdica ou corta na verbosidade para não contaminar os “efeitos emocionais” que se pretendem engendrar, nem por isso se dissolve o espectro de um programa curricular ou de um horário exterior, que paira institucionalmente sobre as imagens projectadas. As paredes de qualquer sala de aula são tão transparentes como os vidros que “protegem” o interior dos edifícios de Playtime (1967).

Muitas mais razões se poderiam nomear para desvalorizar este meio pouco privilegiado, no que ao acolhimento das imagens diz respeito, sobretudo se pensado em comparação com as outras salas (as públicas e as privadas) em que o cinema se experimenta sem o mesmo tipo de anseios ou contingências. E, no entanto, foi nas salas de aula que encontrei uma das coisas que o cinema também inventou: um espaço no qual professores e alunos são autorizados, por momentos, a vestir a pele de passadores (para usar o termo de Daney), quais traficantes de substâncias do desejo, num negócio de troca particular: imagens por palavras, palavras por imagens.

*

O primeiro encontro, depois do qual, só hoje o sei, tudo seria diferente, deu-se na ETIC (Escola de Tecnologia Imagem e Comunicação), por volta de 2004. O professor Alexandre Lyra Leite havia sido convidado para dar uma breve e experimental disciplina de argumento. Talvez não seja um pormenor que a sua formação de base fosse em teatro, já que é de jogos de cena de que aqui falarei. Na sua primeira aula, mostrou-nos uma curta-metragem de Jean-Luc Godard, Armide. Enfin, Il est en ma puissance (1987). Nessa pequena ária adaptada, um conjunto de homens suados vai treinando obstinadamente os músculos num ginásio, enquanto ignoram rumores de sedução que as mulheres, em seu torno, segredam. Ninguém percebeu nada desse filme – muito menos o propósito “curricular” – que nos era oferecido. Não ajudou ao espectáculo que o víssemos num pequeno monitor da Sony, encaixado numa escultórica estrutura de ferros, pregado a um canto superior de uma sala amarela e pela qual desmaiavam, parede abaixo, os mais diversos cabos. Às palavras do filme sobrepunham-se os sons de quem, no corredor lá fora, já produzia um eco nas escadas metálicas em direcção à zona de almoço, de onde começava a emanar um cheiro a empadão de cantina. As belas imagens desse filme, a par da repulsa provocada por esses sons e cheiros, ficaram para sempre infiltradas na minha memória como um conjunto inseparável. Delas são ainda hoje indissociáveis a paixão e o mistério do professor que as mostrou e delas falou, em êxtase e durante alguns minutos, adiando convictamente a nossa saída daquele improvisado momento de tráfico forçado. Era preciso que pressentíssemos – e não necessariamente que entendêssemos – a importância do que nos estava a ser passado. A paixão do professor Alexandre por aquele filme era tanta, que nunca duvidei, até hoje, que esse talvez seja um dos filmes mais importantes do mundo. Ou que só através de uma crença semelhante no cinema se obtém a devida autorização para “traficar” seja que filme for numa sala de aula.

Anos mais tarde, na Escola Superior de Teatro de Cinema, o professor José Bogalheiro surpreendeu-nos com a notícia de que, naquele dia, iríamos ver um filme por inteiro, na primeira metade da aula de Estética. A notícia foi recebida numa euforia silenciosa, que alguns de nós expressaram com punhos cerrados por baixo da mesa, outros trocando olhares de alívio entre si. É preciso lembrar a odisseia que era enfrentar as três horas de saber torrencial a que poucos resistiam nessas aulas, de tal forma que os 90 minutos do filme a que descobríssemos vir a ter direito podiam ser qualquer coisa, desde que fossem verdade. Seria Zerkalo / O Espelho (1975), de um tal Tarkovsky, de quem a maior parte de nós só tinha ouvido falar. Depois da sessão de hipnose no prólogo, também eu, ao fundo da sala, tombei e adormeci, até que as luzes se voltassem a acender. Quando despertei, ainda com o olhar desfocado, havia rostos confusos e um leve sorriso do professor, que, durante muitos segundos (espécie de micro-eternidade), nos perscrutava silenciosamente. Soube nesse momento que tinha perdido um enigma e a sua possível chave, como quando desviamos o olhar do céu e, nesse momento, passa a estrela cadente de que estávamos à espera para entender o sentido do universo. Não foi só o facto de ter possivelmente perdido a chave simbólica de uma difícil e desafiante disciplina: foi pressentir que podia ter perdido um dos filmes da minha vida. Passei o dia envergonhado por fora e angustiado por dentro, sem perceber muito bem como iria corrigir esse desencontro, numa era em que a palavra torrent ainda só fazia parte do dicionário dos hackers informáticos. Quando vi O Espelho, algures, anos mais tarde, percebi que afinal já o tinha imaginado no meio do escuro em que adormeci. Descobri nesse dia que os filmes que amamos são os que esperam por nós, como pérolas no fundo do mar à espera de ser coleccionadas. E descobri mais tarde, num importante livro do professor Bogalheiro, que isso já ele o sabia quando decidiu mostrar esse filme por inteiro, sem mais explicações, como se nos estivesse a dizer que, para a ele chegarmos, seria preciso mergulharmos mais fundo.

Nessa escola, corroborarão os colegas (os que me acompanharam, me precederam e sucederam, os que conheci e os que não conheci), a professora Manuela Viegas é quem mais filmes importantes nos mostra ao longo do curso. Não só pelo facto de serem filmes – ou excertos – excepcionais e escolhidos a dedo, mas, também e sobretudo, porque o rostos, os ritmos e os gestos desses filmes se prolongam no rosto, nos ritmos e nos gestos (aquelas mãos e braços que parecem querer juntar as palavras e as imagens numa dança de louvor) com que a professora nos falava olhos nos olhos. Dois corpos (o do filme e o de uma passadora) que passavam a ser um só, “como se de uma transfusão de sangue [entre o cinema e a vida] se tratasse” (Kracauer). A lista dos filmes com que a professora Viegas nos presenteou é extensa, muito extensa. Mas houve um dia em que a Wanda (1970) chegou. Foi como se o olhar da medusa nos tivesse finalmente olhado de frente: petrificámos.

A história desse encontro com o filme de Barbara Loden fez-se em dois tempos. Um ano mais tarde, eu e o meu melhor amigo partilhávamos o amor por esse filme-segredo, como se de uma substância pessoal e intransmissível se tratasse. Cada aluno que se preze vai tendo a sua “caderneta de cromos” ao longo do curso e era preciso que este troféu fosse só nosso. Foi por isso que, como se sobre ele tivéssemos adquirido direitos de autor, nos enchemos de coragem e propusemos vê-lo numa aula do professor João Maria Mendes. Para nosso espanto, o mais sábio dos professores revelou que não o conhecia. Esta surpreendente revelação transformou por completo a vontade de “marcarmos pontos”, como costumávamos dizer, noutra experiência bem diferente: a típica glória, disfarçada de um pedido de reconhecimento (alguns alunos teimam em achar que quanto mais filmes importantes mostrarem que conhecem, menos alunos são), tornava-se, assim, numa justa e ansiosa espera pelo veredicto final do professor. Chegado o dia, numa sessão de tortura de quase duas horas, não deixámos de imaginar por um segundo aquilo em que estaria o nosso mestre de eleição a pensar da nossa proposta. No final, o professor sugeriu um intervalo, pois precisava de fumar o seu habitual cigarro. No entanto, não foi fumá-lo ao sítio de sempre; ficou dentro da sala, à janela, sozinho e pensativo. E nós, cá fora, sentíamo-nos como candidatos que aguardam os resultados da audição mais importante das suas carreiras. Ainda hoje falamos desse cigarro (ou dois) que o professor Maria Mendes demorou muito tempo a fumar. A aula que se seguiu foi uma das melhores aulas da nossa vida. Nela aprendemos que, quando os melhores professores e os melhores filmes se encontram, o cinema e os professores parecem ter sido inventados um para o outro.

O “filme” e o professor mais importantes que testemunhei a dialogarem um com o outro numa sala de aula foram o Fort Apache (1948) e José Manuel Costa. Pus o primeiro entre aspas, pois apenas vimos, de facto, uma breve cena inicial, na qual um par amoroso interage pela primeira vez e a sós, junto a um lance de escadas, numa composição visual a que a figura de John Wayne se vem juntar minutos mais tarde. No momento em que os três corpos estavam enquadrados em perfeita composição, o professor José Manuel Costa estancou a imagem, como se encontrar o fotograma exacto correspondesse ao gesto de um cirurgião no momento fatal de uma operação. Daí em diante, falou-nos dessa imagem, desse filme, do western, do Ford e do cinema em geral, muito para lá do tempo permitido (como quase sempre), numa tarde chuvosa que ilustrava o seu lamento por não poder mostrar esse e outros filmes por inteiro a uma turma de licenciatura da Faculdade de Ciências Sociais e Humana. Eu, à altura aluno de mestrado na mesma faculdade, tinha ido à aula apenas para interceptar o professor à saída da mesma, na esperança de falarmos da minha tese em desenvolvimento. Quão irrelevante se tornou esse propósito, ao lado daquilo que naquela sala encontrei. Naqueles dez minutos reside ainda o segredo todo o cinema. O que aprendi nessa aula foi algo de muito sério: os filmes que nos importam são como monumentos que levaram muito tempo a erguer, construir e preservar colectivamente, para que pudessem chegar até nós. São edifícios pesados que tratamos como leves segredos, passando-os uns a outros, professores e alunos, num acto de resistência e construção que realizamos em conjunto, em espaços comuns, ao longo do tempo – tal e qual como as três figuras em com-posição, nesse fotograma preciso (e não outro) de Fort Apache.

Se há uma vantagem comum ao cinema e à sala de aula, é a de que podem acontecer em qualquer lado. A sua única regra é a do perímetro inventado (real ou imaginário) que os suspende de tudo o resto. Foi na Cinemateca Portuguesa que descobri, mais tarde, que também ali podia encontrar o que se encontra de único numa sala de aula. Numa transfigurada Luís de Pina, no âmbito das Histórias do Cinema, o professor João Mário Grilo brindou-nos com um ciclo de filmes inesquecíveis (“Cinegeografias”, 2012), sobre os quais as suas observações, antes e após cada exibição, jamais deixarão de fazer parte. Sobre Stromboli, sem dúvida o filme que deu forma ao maior desses encontros, cito-o: “Como foi possível fazer nascer o mais belo filme transcendental da história do cinema de um pequeno triângulo no meio do Mediterrâneo (que, para mais, nunca é filmado de longe, em plano geral, mas sempre do interior)?” (O Homem Imaginado, p. 53). Ainda hoje não saí do interior dessa sala cheia de gente até ao último lance de escadas, na qual coubemos todos nós e um “Mediterrâneo” inteiro. Desconfio, aliás, que desde aí voltamos à Cinemateca na esperança de voltar a presenciar não algo semelhante, mas algo que nos traga a singela memória desse momento de passagem. O que nessa semana aprendi foi que um Museu é tanto mais vivo quanto mais vital for aquilo que se passa no seu interior. Que só assim nos chega do passado a “pós-vida do objecto de compreensão, cujo pulsar se faz sentir até ao presente” (Benjamin, O Anjo da história, p. 110).

Guardo o último relato para uma recente experiência, ocorrida no Atelier Lisboa, em 2018, num curso nocturno leccionado pelo professor Luís Mendonça, intitulado “Fotografia em Movimento”. Com origens e objectivos diferentes, um grupo de cerca de quinze “inscritos” (do qual fiz parte) foi-se reunindo semanalmente numa sala de 8 metros quadrados. Quando alguém chegava atrasado, os lugares ocupados eram forçados a uma reorganização em cadeia, como num jogo de Tetris humano. Estávamos todos tão perto uns dos outros como do Luís, das suas muitas folhas de notas bem preparadas ou do projector entalado na vertical, entre livros, em cima da única mesa comum. Em frente a esse projector, talvez a metro e meio de distância, iam sendo projectadas imagens e movimentos numa pequena tela, pendurada entre janelas com vista turva para uma rua deserta e escura de Alvalade. Também neste curso fui marcado por imagens que nunca esquecerei. Mas, neste caso em concreto, aquilo de que ainda hoje me lembro é das imagens de uns quantos rostos cansados, ora amarelados pela lanterna de baixa luminosidade, ora azulados pela luz do projector reflectida na tela e nos vidros, tão desejosos das palavras do Luís como da História de imagens que ele nos foi contando. “Com as aulas”, subscrevendo o que o próprio diz noutro lugar, “gerou-se um vai-e-vem fervilhante entre os factos da tal História e o diálogo muito nosso, da turma, com cada imagem” (História da Fotografia, p. 12). Imagens que se prolongavam à saída do edifício, nas conversas em direcção a uma estação de metro prestes a fechar; conversas que firmavam a certeza de mais uma aprendizagem: a de que o cinema sempre foi um encontro nocturno que pode acontecer em qualquer lado, desde que haja uma sala, pessoas e imagens numa tela que nos separem do mundo exterior – afinal, “É preciso haver noite para eu poder desviar os olhos da terra, deste pedaço de terra onde me fundi” (Cézanne).

*

Estes breves relatos, que tive a oportunidade de viver com tantos outros, não são mais que esboços para uma necessária revisão política do que pode uma sala de aula do futuro ser. Se é certo que entre nós e os filmes nunca não deixarão de (re)aparecer velhas e novas formas de ligação, aquilo de que aqui falei foi doutra coisa: de uma forma de relação de que o cinema e os seus passadores serão a hipótese capital. Porque “Um passador é alguém que se entrega, que acompanha os seus passageiros no barco ou montanha acima, que corre os mesmos riscos que aqueles temporariamente sob o seu comando” (Alain Bergala, The Cinema-Hypothesis, p. 29).


Pedro Florêncio

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