



Entre os muitos planos esplendorosos que Sergei Eisenstein criou para o seu último filme, gosto especialmente de um fotograma, realizado para a cena “Ivan e os Pintores de Frescos” da terceira parte do filme, que ficou incompleta. Não sobreviveu como imagem em movimento, à semelhança de outras cenas desta parte: em 1946, Estaline proibiu a segunda parte e, em 1951, todos os materiais adicionais do filme inacabado foram destruídos como “erróneos”. Só umas poucas reproduções positivas de alguns fotogramas sobreviveram. Podem ver quatro delas aqui. Tentarei explicar porque é que gosto especialmente de uma das imagens. O co-autor de Eisenstein na criação destes planos foi o grande operador de câmara Andrei Moskvin.
…Ivan (interpretado por Nikolai Cherkasov), de batina monástica, sobe a um piso superior para se juntar aos jovens monges que estão a decorar o Palácio do Kremlin com novos frescos. O czar começa a repreender os pintores, dizendo-lhes que têm de “manter a pureza do estilo antigo”, e aponta “erros pitorescos” à sua equipa, exclamando: “Têm de pintar na tradição do nosso mestre Andrei Rubliov!…”
Os planos mostram como os jovens monges ficam surpreendidos com as reprimendas do czar: a verdade é que estão a desenhar o Anjo da Guarda de Moscovo no palácio do Kremlin, e não um ícone para uma igreja.
A fantasia de Eisenstein baseia-se num facto verídico: em 1951, a Igreja Ortodoxa deu realmente instruções “para pintar ícones, por exemplo, a Santíssima Trindade, a partir dos motivos dos ícones antigos, tal como os haviam pintado Andrei Rubliov e outros mestres famosos…” Mais tarde, o czar Ivan mandou tapar a Trindade de Rubliov com uma moldura dourada – era sinal de especial veneração. (Paradoxalmente, graças a esta menção e acção, o próprio nome de Rubliov sobreviveu nos anais, de onde foi recuperado pelos historiadores e salvo para nós; de outro modo podia ter sido esquecido, como muitos outros nomes na cultura russa…)
O meu plano favorito é o terceiro na composição que proponho: subindo do trono real para a plataforma de madeira dos pintores, Ivan fica exposto ao raio de sol que vem da janela. O todo-poderoso czar dissolve-se na luz!
De acordo com as crenças antigas, a luz é uma substância divina. Em Ivan, o Terrível, a imagem da Luz do Senhor é representada duas vezes por raios poderosos vistos sob as abóbadas da Catedral do Kremlin: durante a cerimónia da coroação de Ivan (na primeira parte) e (na segunda parte) durante o auto religioso, quando o metropolita Filipe acusa o czar cristão de crueldades pagãs. No terceiro episódio, Ivan, que se considera um soberano sem limites, devia desaparecer na radiância da Luz do Senhor do Céu – portanto, a Autocracia na Terra perde poder e significado…
Não duvido que Eisenstein fez este filme com a esperança de que, mais cedo ou mais tarde, o público atento havia de compreender a linguagem do cinema, e que, assistindo a esta “pintura de luz”, as pessoas compreenderiam a ironia da cena.
…Será que Eisenstein e Cherkasov a recordaram no encontro que tiveram no Kremlin com Estaline na noite de 26 de Fevereiro de 1947, enquanto o líder soviético acusava o famoso realizador de “ignorância e distorção da História”, chamava a Ivan, o Terrível um “filme erróneo” e ensinava a Eisenstein como fazer cinema?
Naum Kleiman