
A pandemia do Covid-19 que assola o mundo obrigou a fechar salas de cinema, museus, teatros, recintos de música e outros centros culturais. Em substituição dos espaços onde decorriam os eventos, grande parte das empresas decidiu colocar na Internet gravações audiovisuais de exposições, peças de teatro, óperas, bailados, concertos, festivais e filmes. Algumas destas obras já se encontravam disponíveis em DVD ou em sítios institucionais, mas é de saudar a iniciativa dada a urgência do momento.
A exposição de obras culturais na Internet tem uma função informativa e didática inegável e espera-se que suscite no espetador o desejo e a curiosidade de conhecer os originais. Alguém considera que ver A Ronda da Noite, de Rembrandt, ou Judite e Holofernes, de Caravaggio, no computador é a mesma coisa que estar diante das telas? Alguém considera que assistir a uma ópera no Arena de Verona é a mesma coisa que reproduzir uma gravação no telemóvel? Alguém pensa que ver Stromboli de Rossellini, ou Rio Bravo de Hawks no YouTube é o mesmo que assistir a estes filmes numa sala de cinema?
Dir-me-ão que é melhor do que nada e estarei de acordo. Só espero que não fiquemos definitivamente reduzidos a simulacros audiovisuais do que é a pintura, do que são as artes cénicas, do que é o cinema. No caso dos filmes, permitam-me uma breve digressão pelos atalhos da indústria americana que conduziram à encruzilhada do fim do cinema tal como o conhecemos e ainda podemos apreciar na Cinemateca e nas poucas salas que restam fora do circuito das pipocas.
O Ano Multimédia
Se tivéssemos de escolher uma data simbólica para assinalar a emergência e a rápida consolidação do multimédia, numa época e numa área em que ocorrem em simultâneo múltiplos processos convergentes de inovação, essa data seria o ano de 1993.
Em 1993 ficou disponível a versão 3.1 do sistema operativo Windows, que obteve uma adesão crescente dos utilizadores de computador pessoal e contribuiu decisivamente para a expansão comercial do sector. Embora a interface gráfica do Windows tenha conhecido um êxito assinalável desde que apareceu, em 1985, foi a versão estabilizada do 3.1 que conquistou o mercado, vendendo cerca de três milhões de cópias apenas em dois meses.
Em Março de 1993 a Intel apresentou o primeiro Pentium, que incluía três milhões de transístores num único processador, apontando novas capacidades para o desempenho do processamento de dados. É então lançado o primeiro jogo em CD, cujo êxito junto dos jovens contribui também para a expansão do mercado dos computadores pessoais. O PC torna-se assim uma plataforma fundamental para a evolução dos jogos, a par das consolas já existentes. Um ano depois a Sony apresenta a consola de 32 bits Play Station, que abre o caminho ao 3D.
Em 30 de Abril de 1993 o CERN (European Organization for Nuclear Research), ao qual Portugal aderiu em 1985, anunciou formalmente que a Web seria de acesso gratuito e universal em todo o mundo. Apesar da rede e dos respetivos protocolos de comunicação existirem praticamente desde 1983, a Internet tinha mantido uma utilização restrita a determinados grupos, permitindo a transferência de ficheiros e a transmissão de correio eletrónico. Em 22 de Abril de 1993 Tim Berners-Lee lança o browser Spyglass da Mosaic que, dois anos mais tarde, será vendido à Microsoft, remodelado e rebatizado de Internet Explorer.
A comunicação digital proporciona a elaboração de ambientes virtuais personalizados, os contactos na rede sem constrangimentos institucionais, a obtenção de informação diversa em tempo célere e um sentimento de autonomia individual que reforçam a aceitação do dispositivo. A rapidez e a acessibilidade técnica e económica da Web seriam decisivas no incremento da cultura audiovisual e multimédia.
A palavra multimédia é definitivamente consagrada nos meios de comunicação social a propósito de outro acontecimento marcante, ocorrido a 17 de Maio de 1993. Nesse dia é assinado o acordo de fusão entre a US West e a Time Warner, dando origem ao primeiro grupo mundial de eletrónica, telecomunicações, imprensa, cinema, música e televisão. A estratégia económica e tecnológica de convergência global dos média intensifica o multimédia.
A Time e a Warner tinham-se associado numa única empresa em 1989 para desenvolver sinergias entre a edição internacional de revistas e livros, a realização de filmes, a produção de programas de televisão por cabo e a indústria musical. Em 1995 a Time Warner adquire a Turner Broadcasting, que inclui várias cadeias de televisão – entre as quais, a CNN, a TNT, a TBS – e a maior cinemateca de filmes clássicos americanos. O cinema, a televisão, o jornalismo, a edição e as telecomunicações são as divisões operacionais que sustentam a atividade da Time Warner, bem como das outras corporações multinacionais cujo eixo estratégico é acompanhado pela indústria do entretenimento com interesses nos grandes estúdios de Hollywood.
O Pós-fotográfico e os Conglomerados
Ainda em 1993, estreia o filme Jurassic Park, realizado por Steven Spielberg. A importância desta obra para o tópico que aqui tratamos deve-se ao facto de ser o primeiro filme a utilizar efeitos especiais em animação 3D, com imagens inteiramente geradas por computador.
Jurassic Park foi originalmente concebido para utilizar dinossauros feitos em miniaturas e maquetas mecânicas, como era tradicional neste tipo de filmes. Porém, o realizador mudou de ideias quando viu os testes de simulação digital de dinossauros executados por Dennis Muren na Industrial Light & Magic, empresa de efeitos especiais e pós-produção de George Lucas. Pioneiro da tecnologia de animação por computador, Dennis Muren começou a trabalhar nesta área em 1977 com a equipa de Star Wars e empenhou-se no desenvolvimento do 3D desde meados dos anos 80. Mas é em Jurassic Park que a tecnologia da empresa de Lucas e a mestria de Muren atingem a sua plenitude. Não só os dinossauros são inteiramente imagens geradas por computador (CGI) como as fusões entre as imagens fotográficas dos atores e as imagens virtuais dos animais são programadas em cada plano para coincidirem com os movimentos de câmara, a ação espacial e a perspetiva em profundidade.
Com Jurassic Park confirma-se uma nova era do cinema de Hollywood, em que a estrutura dramática da narrativa – antes sustentada pela ilusão de realidade garantida pela fenomenologia da imagem fotográfica – dá lugar a sensações e simulações digitais hiper-realistas, sem contacto com a humanidade e a emoção dos atores. Estamos perante um tipo de realismo pós-fotográfico que é uma das características predominantes do multimédia. A perfeição dos efeitos produzidos pelas tecnologias da realidade virtual contribui, paradoxalmente, para a recriação do mundo e, no mesmo gesto simbólico, para o seu gradual desaparecimento.
Jurassic Park constitui também um bom exemplo da sinergia comercial impulsionada pela indústria americana do entretenimento. O marketing e o merchandising do filme começaram muito antes de se iniciarem as filmagens. A partir do livro de Michael Crichton, cujo desenho de capa seria igual ao cartaz do filme e ao logótipo dos produtos derivados, a produtora estabeleceu parcerias comerciais para o licenciamento dos mais variados produtos: videojogos da Sega, jeeps da Ford, refeições “Dino-seize” da McDonald’s, guloseimas, discos e vídeos musicais, bandas desenhadas, brinquedos, roupas, séries de televisão, programas de rádio, instalações em museus e parques temáticos, patrocínios e publicações de divulgação científica sobre dinossauros e um sem número de outras iniciativas. Ao todo, só no primeiro ano de exploração comercial do filme, foram licenciados 1000 produtos derivados em todo o mundo. Para termos uma noção da dimensão do negócio, diga-se que o custo de produção do filme foi de 56 milhões de dólares e que os custos da respetiva campanha de publicidade nas semanas de estreia rondaram os 20 milhões. O filme rendeu 50 milhões só no primeiro fim de semana e encaixou 350 milhões de dólares no primeiro ano de exibição nas salas dos Estados Unidos e do Canadá. Se contarmos com o mercado internacional e os direitos de televisão, vídeo, DVD e produtos derivados, a soma ascende a mais de um bilião de dólares nos primeiros anos de distribuição.
Não deixa de ser irónico o argumento do filme criticar a exploração comercial da ilha dos dinossauros, que é transformada em parque temático para turistas sem atender a condições de segurança devido à ganância dos promotores. Spielberg sabe seguramente do que fala, porque é, ele próprio, promotor de várias instalações e espetáculos dos seus filmes nos parques temáticos da Universal Pictures, incluindo um pavilhão “Jurassic Park”.
As grandes produções assumiram-se como um rastilho dos conglomerados empresariais em que se transformaram os estúdios americanos. Não se arriscam a fazer filmes alternativos de qualidade para nichos do mercado, papel que foi sendo assumido por algumas excelentes séries de televisão e por companhias como a Netflix e a Amazon que, 20 anos depois, iriam fazer da televisão e do streaming o motor da revitalização do audiovisual e do cinema americano.
O Cinema em Casa
A partir do Século XXI começa a generalizar-se a projeção em sala de filmes com cópias digitais. Isto permitiu uma redução substancial do preço de cada cópia e da respetiva difusão. Enquanto nos anos 1970 as companhias de Hollywood estreavam em média entre 600 a 800 cópias de película em simultâneo para os filmes que anteviam mais comerciais no circuito internacional, nos anos 2010 passou a ser vulgar a estreia de mais de 10,000 cópias digitais das grandes produções.
Atualmente a cópia digital tem um excelente recorte visual e evita que a imagem se desgaste com riscos e saltos nas transições de bobina como acontecia com os filmes antigos. O digital permitiu também efetuar o restauro do material analógico em estado de degradação irreversível. Neste particular tem sido exemplar o trabalho do ANIM na recuperação de muitos filmes portugueses cujos negativos originais corriam sério risco de deterioração.
Com a ascensão do digital os laboratórios tradicionais começaram a fechar, a Kodak suspendeu o fabrico de película e esteve à beira da falência. Em 2015 quase 90% dos maiores êxitos do cinema americano foram filmados em formato digital. A rodagem de um filme com câmaras digitais permite baixar os custos de produção, dar grande mobilidade e continuidade à imagem, reconfigurar facilmente a montagem e proporcionar oportunidades a equipas de jovens cineastas com ideias originais que de outro modo teriam mais dificuldade em entrar na profissão. Portanto o digital apresenta aspetos inegavelmente positivos no processo de modernização da técnica cinematográfica. A questão reside em saber até que ponto a imersão dos filmes na amálgama do multimédia, centrados nos dispositivos digitais da televisão, do DVD, do Blu-ray, dos computadores e do streaming, sem passar pelas salas, corresponde – ou não – a uma profunda metamorfose do conceito de cinema.
A proliferação do multimédia foi tão célere que em 2007 as estreias em sala já não angariavam mais do que 20% dos lucros de exploração, ficando os outros 80% reservados à difusão do filme em DVD, Blu-ray, Video on Demand, canais de cabo e televisão generalista. De acordo com estatísticas da época quase 90% do público americano via os filmes em casa. As salas continuavam, no entanto, a ter uma função promocional importante: os filmes com maior audiência na televisão, mais venda de DVD e produtos derivados eram aqueles que tinham tido maior êxito nas salas ou que tinham obtido críticas favoráveis aquando da estreia.
Instalou-se definitivamente a ideia da equivalência entre o chamado home cinema e o cinema em sala. De resto, a geração de cinéfilos que cresceu depois do 25 de Abril de 1974 habituou-se naturalmente a descobrir e a gostar de filmes através da televisão, do cinema em casa e das obras cada vez mais abundantes e disponíveis nas plataformas digitais mas ausentes das salas.
A emergência recente da Netflix e da Amazon como produtoras de home cinema permitiu o aparecimento de filmes alternativos à mediocridade em que se tornou Hollywood, salvo raras exceções. Não só têm apostado em projetos que seriam inviáveis em outros estúdios como conquistam todos os dias mais espetadores e assinantes devido à comodidade, disponibilidade e diversidade do cinema em casa. Tudo o que é interessante acaba por passar na televisão ou ficar disponível na Internet. Temos de constatar o óbvio: hoje a experiência cinematográfica não passa exclusivamente pelo ritual do visionamento em sala.
No entanto, o encerramento definitivo das salas independentes seria sem dúvida o fim histórico de uma era, anunciado pelo menos desde 1993. Se tal se viesse a confirmar, o papel das salas de projeção da Cinemateca tornar-se-ia ainda mais crucial como memória viva, ponto de encontros, partilhas, debates e experiência única da diversidade de um reencantamento cultural sem paralelo.
Eduardo Geada