
A mulher, de costas para mim. Cerro os dentes e cravo o meu olhar nela, esforçando-me por acreditar nesse “para mim”. É um esforço brutal, que tem uma qualidade de reza. Não posso deixar que ela seja de mais ninguém, não, não. A mulher tem um cabelo encaracolado e muito comprido, até à cintura, e chama-se (acredito) Súria. O meu nome (falso) é Gaspar. A luz no quarto desce ao nível “começo da noite”. “Olá”, digo em voz baixa. Ela não responde. Talvez não tenha ouvido. Dispo o casaco escuro que uso para trabalhar e aproximo-me. Ela está como veio ao mundo. Vejo que se demora a mexer no cabelo só para me atazanar. Diz, “Toca-me.” Eu peço-lhe para não me falar como fala aos outros. Ela responde, “Não sei quem és.” Eu digo-lhe que isso é porque está de costas para mim. E repito esse “para mim”, a ver se soa verdadeiro. “Para mim”, digo no meu quarto de sempre. A voz seca, fora do corpo, chocando contra o teto, contra as paredes (contra as portadas fechadas da janela solitária que, dantes, dava para a Rua dos Douradores e, agora, dá para um espaço indistinguível entre prédios, desmerecedor do nome “rua” ou de outro nome qualquer). A minha voz batendo contra as coisas e caindo, uma e outra vez, como um pardal perdido. Tudo se repete mecanicamente. Ela não me responde mais. E eu desisto também de tentar ver a diferença dela. Quando a sessão acaba, sinto-me vazio, aliviado, mas da maneira errada. Ao espelho da casa de banho, dou-me conta de que está tudo igual. Isto é, envelheci mais um dia. Estou cada vez mais pálido, cada vez mais próximo da ideia de “homem” e cada vez menos parecido comigo. Não sei, ao certo, em que ponto deste “tempo novo” é que me transformei num Gaspar. Do frasco de tampa vermelha, ele (eu) tira a pílula de hoje e coloca-a na ponta da língua. Como sempre, detém-se um segundo ao espelho assim, antes de fechar a boca. Olhamo-nos com olhos pretos-opacos; eu atrás do espelho, ele avançando devagarinho até sentir o material frio do lavatório contra a barriga. Depois engole a pílula oficial, eu começo a sentir uma sonolência branca e adormecemos os dois. Amanhã, será o mesmo dia.
Das oito às onze, trabalho as análises que me enviaram. Produtividade, sustentabilidade, mortalidade. Dormi magnificamente e agora sinto-me com energia para cumprir a função que me foi entregue pelo Estado. O candeeiro do escritório dá uma luz de “dia de sol, sem nuvens”. No ecrã os dados batem todos certo, como é natural. Os de primeiro plano, pelo menos. Nos de segundo e terceiro plano, julgo descortinar certas contratendências que podem vir a concretizar-se em surpresas reais no futuro, mas não as registo ainda. Aprendi a ser prudente, a espaçar as minhas observações (pelo menos as que vão em sentido contrário às análises básicas do algoritmo) para marcar posição. A máquina integra muito depressa todo o tipo de indicações exteriores, melhorando a recolha e o tratamento de informação, empregando mais meios e recapacitando o algoritmo, e trabalhos como o meu vão-se tornando “obsoletos”. Neste momento a máquina acerta em 98,3% dos casos. O dilema dos contra-analistas (este uso do plural é uma forma de esperança ou negação) está aí: como cumprir a nossa nobre tarefa e, ao mesmo tempo, defender esse 1,7% de instinto humano para a falha, para a subtileza, para o imprevisível, para o oculto. Na pausa das onze, encosto-me às portadas fechadas da janela do escritório. Quando dou por mim, estou à escuta de alguma coisa. Mas do quê? Do mundo, de um bocado de mundo, de algum sinal da sua existência? O que eu daria agora pela graça de uma revoadazita de vento do lado de fora do prédio! Mesmo o chiar abafado de um drone de entregas já me contentaria. Mas não ouço nada (zero) e, passados dez minutos, tenho de regressar à secretária. Gaspar senta-se sempre muito direito. Veste-se num estilo formal (fazendo-se mais importante do que é?) e bastante antiquado (como se ainda houvesse paciência para modas!). Talvez isso faça parte de um processo subconsciente de camuflagem, uma espécie de suicídio pela transparência. Tornar-se tão “típico” que se torna “incaracterístico” que desaparece. Não sei, Gaspar é um enigma. Embora de perto, ao espelho, seja simples e óbvio como qualquer homem (ou será, também isso, um dos seus “truques transparentes”?).
Janto a comida que me foi entregue pelo buraco oficial (a abertura, tapada por uma portinhola, que fizeram em todas as portas na célebre segunda-feira em que o mundo mudou). Salsicha, batatas fritas e redução de verde. Este “tempo novo” é muito velho (tanto que, às vezes, penso na vida anterior como um delírio só meu, um sonho doentio e inconfessável) e, ainda assim, aflijo-me todos os dias, no momento de ir ver da caixa. E se eles param de entregar? No começo, encostava-me à porta, uns minutos antes da hora habitual, a ver se percebia um indício, uma pista (de um mistério que nem sei nomear, de um crime que nem sei se aconteceu). Sustinha a respiração e rodava a cabeça lentamente, regularmente, como um radar, para aumentar o ângulo de captação dos meus ouvidos saudáveis, mas nunca consegui apanhar um barulhinho que fosse. O drone subirá de escadas ou de elevador? Ou será um robô com pernas a vir cá cima trazer a caixa? Serei eu o único morador que resta neste velho prédio? E, se há mais, por que razão não se fazem ouvir, que segredo os torna cúmplices do grande silêncio geral? No final da refeição, Gaspar tem o hábito de ir à retrete. Senta-se a ler velhas histórias de quadradinhos e o tempo vai passando. Depois vai fechar o dia no escritório: verificar se há atualizações importantes, rever e assinar os relatórios diários, desligar o computador e mudar o candeeiro para “trevas”. Até que chega, por fim, a hora da sessão. No ecrã do quarto, acende-se de novo aquela Súria (estranho). De costas, nua e encaracolada. É a primeira vez que uma mulher se repete. No quarto de “luz vermelha”, paro um momento a pesar a novidade. Será mesmo ela ou uma gémea? Ou uma sósia? Ao dar-me conta desse “mesmo ela”, não consigo deixar de rir. Ela, quem? Ha, ha. Como se alguém ainda fosse “mesmo”! Rio-me com certo descontrolo, mas, ao perceber que Gaspar não me acompanha, paro. Não é hora para risos, talvez. Não, claro que não.
No ecrã, a mulher assemelha-se a coisas, de tão parada que está. Uma coluna, uma bandeira, um tambor destruído. A sua quietude dir-se-ia imune a nomes e, no entanto: Súria. E, de costas, parece estrangeira (ou será do nome?). Não sei, são muitas perguntas. Não sei por onde começar (um sinal?). É uma cena tocante, com uma claridade de laivos metálicos; no quarto, a luz vai mudando-rodando para “noite de lua cheia”. Eu penso dizer “Súria” para conhecer com os meus lábios a identidade da mulher nua, mas decido calar-me para aumentar esse prazer atrasando-o. Dispo o casaco escuro que uso para trabalhar e aproximo-me. “Chiu, não responda”, diz ela. “Sussurro para eles não detetarem. Espero que me consiga perceber.” Não digo nada. Não sei o que responder. Percebo tudo, cada palavra segredada pela mulher, mas os hábitos do “tempo novo” imprepararam-me para aquilo. Gaspar faz como eu. Isto é, não faz, como eu. Os dois parados, calados, como que congelados, à espera que o perigo se resolva por si só. Se não fosse um instante de tão alto drama, poderíamos julgar tratar-se apenas de dois homens a brincar ao jogo do não. É então que Súria recolhe o cabelo. (A mão direita atravessando a imagem até ao ombro esquerdo, recolhendo o longo cabelo encaracolado para a frente, desnudando o pescoço tão incrivelmente pálido.) Recolhe o cabelo como se abrisse uma cortina e vira-se para mim. “Para mim?”, pergunto-me numa voz baixa e fina de rapaz (com medo da reação de Gaspar). Súria tem o rosto amplo e uno que sempre imaginei sem saber. Olhos verdes de verdade. E agora diz: “Ajuda-me”. É um convite. Aquela voz, aqueles olhos não enganam. Não é um pedido, é um convite.
Nessa noite, acordo com Gaspar em cima de mim, perdido de raiva. Quer matar-me e matar-me com o máximo de sofrimento que duas mãos possam dar. Mãos, pernas, dentes. O rosto vermelho de esforço, o pescoço feito de veias e tendões que ameaçam rebentar a qualquer momento, a boca torcida de ódio ou lá o que é. Estamos os dois nus, o que acrescenta um natural desconforto ao esforço da luta. Não, não, isto é demais. Nunca imaginei ver Gaspar assim, ele que costuma andar tão composto e se comporta sempre tão “profissionalmente”. Não, não, não aguento. Em desespero de causa, rio-me. Não sei, dá-me para rir ao ver o rosto de Gaspar tão diferente do habitual. Não me ocorre nenhum pensamento, mas creio que, posto em palavras, o que sinto seria qualquer coisa como: “Se este Gaspar se pudesse ver de fora, como sofreria, ha ha!” Espantosamente, resulta. O riso faz Gaspar largar as mãos do meu pescoço e considerar a situação (em geral) e a sua figura (em particular). A partir daí, claro, já não lhe é possível prosseguir com o ataque. A fúria tem o seu tempo. É esse o calcanhar de Aquiles da violência irracional; quebrado o contínuo que a liga ao ponto de origem (um pretexto, por vezes, mínimo ou inexistente para todas pessoas menos para o próprio, para o “hospedeiro”, digamos, do vírus raivoso), ela esmorece e vai-se.
Depois desta primeira vitória, pude deitar-me de lado e sonhar com a mulher. “Súria”, sussurro debaixo da almofada. Por que me terá ela escolhido? Aí está uma pergunta que não me coloco no sonho. No sonho é de dia e eu estou acordado. Sinto-me contente por ter ouvido aquele “ajuda-me” da boca dela e, ao mesmo tempo, aceito sem espanto ser eu o escolhido. No sonho, sou uma figura vestida de Gaspar, mas com a expressão meio divertida meio matreira que tenho quando não penso em rigorosamente nada. Ah, e estou amarrado a uma cadeira com um par de cordas grossas. É um jogo. Súria partilha a sala comigo; não a vejo mas sinto a sua presença. A voz da mulher trata-me pelo nome (falso) e pergunta-me se eu já aprendi a sussurrar. Eu tento responder, mas tenho a garganta seca, as palavras não me saem com força, e a voz dela sobrepõe-se à minha. Súria diz-me que, na próxima sessão, precisamos de conversar mais e lutar menos. Eu começo a dizer-lhe que não foi uma luta, foi uma brincadeira, mas a voz dela (que vem de onde?, do chão?, do teto?, do espaço incaracterístico para lá das portadas da janela que, há muito tempo, se chamava “dos Douradores”?) cavalga por cima da minha insistindo na importância das questões práticas. Que temos de preparar a hora H. Que temos de gizar um plano de fuga perfeito. Que temos de nos encontrar à revelia do sistema do Estado. “Como?”, pergunto eu. E ela: “Fisicamente.”
De manhã, cumpro as tarefas quotidianas com a maior tranquilidade que sou capaz de fingir. Há uma ligeireza quase elegante nos meus gestos enquanto executo os rituais de higiene e pequeno-almoço. Às oito horas em ponto, estou em frente ao computador a analisar os dados acabados de chegar. Gaspar, por contraste, mostra-se um pouco perdido. Ou, não, “perdido” talvez seja ir longe demais, que os seus truques de transparência são uma autêntica armadura contra a derrota ou a “perdição”. E “mostra-se” também será um exagero, claro. Nas suas horas mais distraídas, Gaspar “mostra” tanto como um vidro colocado à frente de um muro. Digamos, vá, que tem as sobrancelhas um tudo-nada desgrenhadas e que, enquanto estuda os gráficos no ecrã, mastiga em seco com uma regularidade estranha. Pensará em quê? Tento distrair-me dessa pergunta e concentrar-me na informação que devo contra-analisar até às onze. Produtividade, sustentabilidade, mortalidade; índices e gráficos, linhas e conjuntos, grelhas e setas. Mas Gaspar (a impressão que a sua quietude desgrenhada deixa no ambiente do escritório) não me deixa esquecer o raio da pergunta. Em que pensa ele? Aquele rosto, conheço-o eu bem. É uma máscara, um mapa, um alvo. Talvez se eu lhe acertasse em cheio… Fecho os olhos, construo mentalmente o rosto do funcionário Gaspar e projeto todo o meu intelecto na sua direção. Ou vai ou racha. Debruço-me sobre a questão com tal afinco (aliviando, durante algum tempo, é verdade, a atenção devida às análises oficiais no computador) que acabo por perceber. Ó diabo, ele pensa em mim! Gaspar pensa em mim… E, nesse instante, dou-me conta de que, mais uma vez, perdi a luta.
Mas ele também tem de viver neste mundo. Também tem de comer, respirar, etc. E é sabido como a rotina acaba por cansar até os mais frios e ginasticados. Sim, Gasparzinho, deixa passar o tempo e vais ver. Ao primeiro deslize, lá estarei eu para aproveitar.
Hoje ele alimenta-se como um robô. Abre a caixa entregue pelo buraco oficial e, sem uma hesitação ou um copo de tinto, come a refeição do dia (hambúrguer, batatas fritas, concentrado verde). “Comer” não é o termo; “deglute”, “digere”. Não se põe minimamente no momento, dentro do que está a fazer, limita-se a cumprir a função. É como se o fato do homem é que estivesse a almoçar. Mastigar sólidos, ingerir nutrientes. Não é “comer”, não. Depois, à hora prevista, senta-se à secretária. Números e botões, cliques e píxeis. Sob uma luz do tipo “fim de tarde amarelado”, eu respiro fundo e tento ver-me de fora. No cenário de sempre, uma ideia ganha clareza: Gaspar e eu somos um paradoxo que cresce. Enquanto ele se vai tornando cada vez mais transparente, eu pareço mais duro, pequeno, denso, concentrado, calcificado, opaco (e, no entanto, que estranho, sinto-me a desaparecer, absorvido pela “transparência” de Gaspar). De noite, Súria não vem. “Linda” chama-se desta vez a mulher da sessão. A habitual figura branca e loira, com olhos de vidro e bochechas reconstruídas. Seja como for, repito as ações esperadas e consigo os efeitos previstos. Não quero chatices. Sei bem como o Estado se preocupa com o bem-estar dos seus cidadãos e como se enfurece com desvios ao guião da sociedade feliz e correta. Gaspar (cujas sobrancelhas se mostram certinhas agora, quando é que ele as terá penteado?) mantém-se impassível.
A minha única hipótese é durante o sono. Quando ele dorme, quando o silêncio é mais “natural” do que “oficial”, quando toda a cidade está em modo desligado, com os cornos pousados sobre a almofada. “Boa noite!”, digo para mim próprio, e avanço pelo corredor central do sonho. A luz é de “dourados doentios”, a paisagem dividida a meio. As montanhas e as casas estão cortadas matematicamente para deixarem passar o meu corredor onírico. Vou alegre a caminhar, não sei porquê. Sinto em mim o fresco alento de quem vai iniciar um passeio pelo campo. Não assobio mas é como se o fizesse. E, no entanto, atrás dessa passeante ligeireza, uma zona mais escura do meu coração sabe que busco alguma coisa importante. Ao longe, há uma luz. Uma luz sem significado. Descentrada na paisagem matemática, uma luz “não realista” que me puxa só porque não há mais nada. Ando muito tempo, o que no sonho me parecem quilómetros e quilómetros, até chegar a um ponto no corredor central de onde consigo perceber a luz como uma figura nua e molhada, que reflete toda a luz que lhe bate. “Súria?” pergunto, sentindo-me corado da cabeça aos pés. E ela dá-me uma ordem. (Não lhe ouço a voz, é curioso, talvez a paisagem seja demasiado matemática para permitir a propagação do som ou talvez a mulher tenha aprendido a sussurrar tão baixo que consegue comunicar por infra-sons). Diz que vamos fugir os dois. E que temos de nos encontrar no lugar onde costumava estar a velha Igreja de São Nicolau. “Fisicamente?”, penso. A visão do corpo da mulher provoca-me uma sensação de estilhaço, flores desfeitas, vozes meninas, espadas nuas, arco-íris no óleo, arco do triunfo no peito, noite profunda, estilhaço, estilhaços, estilhaçar sem fim. E a ordem vem, digamos, molhada dessa sensação.
Mas, depois, já se sabe, acordo, e o dia lança-se na sua marcha relojoeira. Contra-análises, comida da caixa, retrete, silêncios atrás das portadas fechadas, relatórios finais. Durante a sessão (em que participa uma “Karla” muito vivaça), sigo os rituais com uma aplicação irrepreensível, deixando-me absorver ainda mais pela transparência de Gaspar. Quando a coisa acaba e a luz cai de “claro-escuro clássico” para “negrume de baixa energia”, estamos os dois praticamente indistintos. Nesse “praticamente” é que vive a minha esperança, amor. (Sim, apaixonei-me pela mulher dos meus sonhos.) Aí onde estás, Súria, consegues ouvir este meu pensamento?
E vamos os dois tomar a pílula. Todas as noites, a mesma noite. Que reconfortante, não é?, sabermos que há coisas certas, rituais que não mudam, referências que, mesmo quando tudo desaba, se mantêm firmes no seu sítio. Na casa de banho de sempre, ele tira a pílula do frasco de tampa vermelha. Coloca-a na ponta da língua e olha-me no espelho (olha-se). Temos o mesmo rosto afiado, a mesma boca calada, os mesmos olhos pretos-opacos, mas esta é a minha história. Eu é que faço a minha história, esta história é só para mim. O nosso olhar dura um segundo imenso, não posso vacilar. É assim que isto acaba? No último momento, acontece o mesmo que em todas as histórias: ele percebe (talvez) e eu arrependo-me (quase). Contratendência de segundo plano redunda, sim, numa surpresa real. E, pronto, já está. Fechamos as bocas. Os dois, silêncio duplo. Mas a pílula que ele engole não é a do sono. Mas os olhos que ele mantém abertos não são deste mundo. Matei-o finalmente, consegui. Aquele que, em mim, era sem nome e enlouquecia a pensar, a imaginar, a sonhar já não é mais.
Jacinto Lucas Pires
Maio de 2020