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Passeio com Jonathan Corbett

por Bruno Andrade · 25 de Junho, 2020

No seu melhor, o faroeste italiano fez jus a essa inclinação bastante específica de um cinema que seria ao mesmo tempo popular e sofisticado, tradicional e moderno. Foi, globalmente, um gênero menos exitoso que o peplum, o fantástico, a commedia all’italiana, e por isso suas exceções parecem ainda mais valiosas, levando-se em conta as circunstâncias extremamente adversas que pesavam contra a transposição para solo transalpino de um gênero tão específico como o western. Mas, por pouco mais de 10 anos, foi o gênero que mais prosperou na Europa, e na sua curta duração ele legou, além de uma série de paradoxos, ao menos um autor cujo nome encontramos nas enciclopédias e que foi definitivamente integrado ao corpo da grande história do cinema: Sergio Leone. Isso significa que ainda há trabalho a ser feito. E para fazê-lo foi necessário provar muito leite coalhado antes de chegar à nata, como disse certa vez Quentin Tarantino (que, apesar disso, demonstrou nos dois faroestes que dirigiu não entender absolutamente nada do faroeste italiano, ou mesmo do faroeste no seu todo, ainda que tenha feito alguns bons filmes sobre Hollywood, suas ficções e alguns de seus fantasmas), foi necessário passar anos em busca do cineasta que teria reconciliado o gênero consigo mesmo, o faroeste italiano com o western americano (Leone, cuja contribuição é inestimável, lançou-o definitivamente à ópera, ao devaneio e à fábula, apagando com estas a realidade e o contexto histórico, psicológico, político e moral que fundaram o western). Este não foi Sergio Corbucci (bom comunista, nem sempre bom cineasta) nem Damiano Damiani (o interesse indiscutível de Quién sabe? / O Mercenário, 1966-1967, reside justamente em deixar, a partir de duas personagens que escancaram os paradoxos de toda revolução, uma ferida aberta que vários filmes atravessaram desde então).

Foi necessário descobrir esses ritmos que não existem em nenhuma outra arte, que nunca existiram antes do cinema, e mais especificamente nunca antes dos faroestes italianos filmados na Espanha; foi necessário ter amado o cinema italiano para além de toda medida, tê-lo amado para além dos seus próprios limites, para além do razoável e para além do que ele mesmo foi capaz de produzir a partir da segunda metade dos anos 1980; foi necessário ter visto no cinema italiano, no seu cinema tradicional e no seu underground, nos seus autores célebres e nos realizadores ditos “menores”, na constância dos gêneros e na efervescência das experimentações, e principalmente na fusão entre as duas coisas, todo o cinema; foi necessário, portanto, ter passado por tudo isso para um dia nos depararmos com Lee Van Cleef andando numa viela quente e úmida de algum vilarejo mexicano após atravessar o meio do nada de algum deserto, visitar um mosteiro de padres que no passado foram fugitivos da lei e passar uma noite encarcerado numa prisão mexicana; foi necessário ver, e talvez se ver em Lee Van Cleef com os passos demorados, desalinhado, perdido, talvez um pouco atordoado, andando com os ombros caídos até avistar uma procissão; foi necessário acompanhar cada um desses passos e ver, e talvez sentir, que estamos diante de um western, e não de mais um faroeste rotineiro, um western que mostra algo que nunca víramos antes em western algum, ou que pelo menos nunca vimos com tamanha nitidez, com tamanha simplicidade: um forasteiro, um americano, um gringo que após ter passado por um deserto, um mosteiro e uma prisão sente fome, e que cede à tentação de roubar uma rosca durante uma procissão, um gringo que por alguns instantes se vê numa situação que fora vivida por outros, aqueles a quem perseguia, e sente o que estes sentiram em tantas ocasiões passadas, sente aquilo que nunca havia sentido antes, ainda mais em um lugar em que todos são nativos e ele é o estrangeiro.




Se a originalidade discutível do faroeste italiano consistiu em mostrar desordenadamente aquilo que o western tradicional ocultava sistematicamente, em exagerar até a degradação aquilo que o western mostrava de maneira extremamente parcimoniosa, o gênio indiscutível de Sollima manifestou-se na representação consistente das formas do western que melhor resistiam ao pastiche na maior parte das vezes degenerado dos faroestes italianos, pela maneira como compensou a exacerbação do furor e da violência inerentes à deriva italiana do gênero com a descrição de ciclos históricos cada vez mais abrangentes, particularizando os dramas alegóricos de personagens inevitavelmente alegóricas e para isso subordinando-as novamente a algumas determinações pregressas do gênero. Nesse sentido Faccia a faccia / Cara a Cara, de 1967, é a obra-prima do seu autor e de todo o faroeste italiano: Sollima propõe uma parábola sobre o nascimento da brutalidade, da consciência, da justiça, do fascismo – uma parábola, em suma, sobre as origens da Itália do século XX.

Como Vera Cruz (Robert Aldrich, 1954), como Ugetsu monogatari / Contos da Lua Vaga (Kenji Mizoguchi, 1953), como Run of the Arrow / A Flecha Sagrada (Samuel Fuller, 1957), The Man Who Shot Liberty Valance / O Homem Que Matou Liberty Valance (John Ford, 1962) e Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), Faccia a faccia procede integralmente sobre silogismos dialéticos: a montagem é toda estruturada por elipses que desempenham o papel mediador da linguagem, e é com esse dispositivo formal que Sollima extrai os juízos necessários sobre os conhecimentos que apresenta, associa e problematiza. O filme narrativo-dramático de espetáculo ultrapassa os seus limites ao avistar, nas dunas dos desertos da Almería, sob as vestes de um gênero completamente fundado sobre os mitos da formação de um país, o registro épico de Brecht e Meyerhold, e por uma vez aquilo que vemos em um faroeste italiano se assemelha muito mais ao imaginário épico das tragédias romanas de Pierre Corneille que a mais um comentário reflexivo ou satírico sobre o western americano. Quando vemos pela primeira vez Gian Maria Volontè passando de intelectual absorto a fugitivo da lei a bandoleiro e finalmente a capo de quadrilha, a capo di tutti capi, sua interpretação parece destituída de nuances, parece mesmo equivocada na curta alternância entre distanciamento e febrilidade. O que se passa na realidade, como mais tarde será o caso de Oliver Reed em Revolver (Sergio Sollima, 1973), é que assistimos a uma das grandes interpretações do cinema, uma das mais ousadas, análoga nesse sentido às de John Wayne em The Searchers / A Desaparecida (John Ford, 1956) e Charles Chaplin em Monsieur Verdoux / O Barba Azul (1947). O idealismo desesperado de Volontè e o cabotinismo metódico de Tomas Milian, mais do que registros, mais do que contradições, servem-se mutuamente como contrapesos, atuam como um instrumento formal necessário ao sistema silogístico do filme: a brutalidade instintiva que se abre à tomada de consciência, em si revolucionária, é complementada, e não antagonizada, pelo refinamento que se degrada e que, ao enclausurar-se no seu romantismo, na sua subjetividade, termina por se embrutecer. O homem que se levantou em revolta primeiramente contra toda a ordem social vigente, mais tarde contra a sua terra e seus semelhantes, um deus vestido de preto; o homem que se levantou em revolta primeiramente contra si mesmo, mais tarde pela sua terra e seus semelhantes, o diabo vestido de branco[1]. A referência a Glauber Rocha, como a referência ao Aldrich de Vera Cruz, não é arbitrária: através dessas duas trajetórias Sollima descreve todos os processos, todos os projetos revolucionários a que o homem se dedicou no decorrer da história, e afirma categoricamente – como homem, como cineasta, como ex-combatente na resistência ao fascismo – que não haverá revolução de qualquer espécie, seja ela econômica, social ou existencial, enquanto não houver aquela, primeira, da consciência humana. É preciso ter visto Volontè cambaleando sob os céus das ideias eternas, sobre as sierras de Piedra de Fuego, rumo à sua própria morte, Antonio Gramsci metamorfoseado em Friedrich Nietzsche no momento em que precisa justificar o fracasso da passagem do discurso revolucionário a uma prática revolucionária; é preciso ter visto a maneira como Sollima filma seus últimos passos de homem antes de sumir em meio às areias do deserto como um deus para só então ousar pronunciar a palavra “dialética”. O que em algum momento começou como um cinema bruto sobre personagens brutas, feito para espectadores brutos, passa, a partir de Faccia a faccia, por um processo análogo àquele vivido pelas personagens do filme: a brutalidade se transforma em elegância, em sofisticação, em uma forma de dialética obreira que encontra o seu equilíbrio não nas dicotomias que estão na sua origem nem nas convergências que tem como destino, mas numa série de contradições sabiamente entrelaçadas que terminam por revelar as estruturas internas dos conteúdos e dos objetos que essa dialética se presta a analisar. Esse movimento, à imagem da aspereza com que Volontè e Milian interpretam seus papéis, faz com que Faccia a faccia seja, como os filmes de Aldrich, Mizoguchi e Fuller citados acima, como Renoir alguns anos antes com La règle du jeu / A Regra do Jogo (1939), como Jean-Marie Straub e Danièle Huillet alguns anos mais tarde com Othon (1969-1970), um filme incrivelmente veloz, o tempo todo à beira da convulsão e da síncope, construído como um conjunto de dialéticas que acabam submetidas à dialética suprema, aquela cuja meta é mais divina do que humana – a dialética do tempo, e mais precisamente o tempo da história.

A luz branca que se irradia até tomar toda a tela no início de Faccia a faccia não corresponde mais à metáfora rudimentar da chegada de um herói salvador como em Fistful of Dollars / Por Um Punhado de Dólares (Per un pugno di dollari, Sergio Leone, 1964). Ela simboliza a entrada na consciência de um novo homem que ainda não é, mas que poderia ser, e que talvez nunca será, aquele representado por Gian Maria Volontè nos primeiros minutos do filme, ao encerrar a sua aula de história para uma casta de privilegiados jovens bostonianos. Essa entrada na consciência de um novo homem, que também corresponde à entrada na consciência de um novo tempo, é o corolário de outro movimento do filme, pelo qual contemplamos a morte do principal fruto da cultura europeia do século XIX: o intelectual romântico (a reflexão de Sollima não está tão longe da que Glauber fez no mesmo ano de 1967 com Terra em transe e no ano seguinte Bernardo Bertolucci com Partner., Gustavo Dahl com O bravo guerreiro e Robert Kramer com The Edge / A Margem). O novo homem desse novo tempo só poderia nascer do choque entre uma velha tradição (a de um velho gênero, por exemplo) e uma forma nova, impura, mestiça dessa tradição (já esboçada pelo mesmo Glauber em Deus e o Diabo…).








Bruno Andrade

NOTA:

[1] Na Itália o filme de Glauber Rocha chamou-se Il dio nero e il diavolo biondo.

(Trechos do texto O teatro de feira dos desertos de Almería, a ser publicado na próxima edição da FOCO – REVISTA DE CINEMA. Lançamento: agosto deste ano)

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