
Do filme ao acaso, já não me lembrava nem do título nem do nome do realizador, embora tenha fixado dois actores (Peter Cushing e Christopher Lee), aquele filme que eu fui ver sem saber qual era, só porque me apeteceu ir à Cinemateca nessa noite (meados dos anos oitenta). Ainda não se publicava o programa (quando se ganha uma coisa perde-se logo outra).
Eis como descreveria o filme: numa viagem nocturna quatro homens encontram-se numa carruagem de um comboio. Um deles é a morte (ninguém sabe, embora esse passageiro pareça fazer parte de outro filme, o que deveria ter advertido os outros). Combinam entre si contar uma história da vida deles. Acabam todos por morrer.
Não é bem assim. Já lá vamos. Primeiro, o nome do filme: Doctor Terror’s House of Horrors, que em português deu O Comboio Fantasma. O comboio não era fantasma, era um comboio inglês como qualquer outro, sujeito a desastres, o que foi o caso, descarrilou ou chocou contra qualquer coisa e os cinco (não três + um) homens daquela carruagem morreram todos. O sexto ocupante chamava-se Doutor Schreker (que um dos outros, mais sabido em alemão, traduz por Terror). Só que o título original também não vai direito ao assunto. Não há nenhuma casa de horrores. Aqueles homens nunca se haviam encontrado antes e, depois de se terem encontrado, já sabem que estão mortos, como naquele derradeiro momento em que na guilhotina a cabeça se separa do corpo.
Neste filme, como em todos os filmes de terror, há uma mistura, nalguns momentos deliciosa, entre a visão do mundo mais naturalista e o nonsense, a pequena deslocação em que se abrem as frinchas por onde passam os medos e desejos. O realizador chama-se Freddie Francis, o filme saiu em 1965 (agradeço a Arnaldo Mesquita a preciosa ajuda). Se, enquanto realizador, Freddie Francis só fez filmes série B de terror, já como director de fotografia colaborou em filmes de todos os géneros, reconhecido por grandes realizadores, como é o caso de Lynch (The Elephant Man / O Homem Elefante [1980], Dune [1984], The Straight Story / Uma História Simples [1999]) ou de Scorsese (Cape Fear / O Cabo do Medo [1991]).
Eis como contaria agora o filme: cinco homens, muito diferentes entre si, ocupam à vez a mesma carruagem de um comboio cujo destino é Bradley. São todos de natureza afável, menos um que viremos a saber tratar-se de um eminente crítico de arte.
Outros filmes me vêm à memória em que alguém inventa uma história no momento em que vai morrer, um também se passa num comboio com o seu desastre, Un soir, un train / Laços Eternos do Delvaux, 1968 (três anos depois); o outro, os melhores sonhos que atormentam e libertam o jovem que dá o nome ao filme, Donnie Darko de Richard Kelly, 2001.
Os passageiros do comboio não contam história nenhuma da vida deles, é o Doutor Schreker que se encarrega da tarefa, por meio de um baralho Tarot. Há uns que espontaneamente se oferecem para o jogo, outros que se mantêm mais prudentes, o tal crítico de arte (Christopher Lee) é o mais relutante, tratando com grande displicência e arrogância o mago (Peter Cushing).
Para cada um deles, o Doutor Schreker tira quatro cartas que dispõe à frente de todos, de seguida lê as cartas, adiantando a cada um o seu futuro. No termo de cada narrativa, aparece sempre uma quinta carta, a da morte. Não só a sentença é que todos estão condenados, como justificando-a, eles parecem ser todos culpados. O mais curioso é que os contornos desse destino não se cumprirão, nenhum deles passará pelas provações anunciadas, embora nenhum deles saia vivo do comboio. A culpa é, então, a lançadeira.
Em dois deles é evidente, um músico de jazz (as peças tocadas soaram-me muito bem) que transcreve os acordes de uma cerimónia Vudu, atirando para trás das costas todas as advertências em contrário; o outro, o tal crítico de arte que decidiu matar por atropelamento um artista que ele já havia humilhado, mas que, entretanto, tinha conseguido vingar-se ridicularizando-o várias vezes. Apesar de não morrer, o pintor perde a mão direita no acidente, o que o leva a atentar contra a vida. Depois disso a mão decepada há-de perseguir o crítico em várias peripécias de antologia, até finalmente provocar o descontrole do carro em que o crítico viaja: o resultado será a cegueira.
Nos outros três casos, podemos supor, no primeiro, a avidez e a luxúria de um arquitecto em relação à viúva de um antigo cliente, que sob a encarnação de um lobisomem o vem aterrorizar; no segundo, a vingança de uma planta defendendo a sua sobrevivência: ela não quer simplesmente ser cortada. Desde a infância que eu ouvia falar sobre os poderes da sensibilidade vegetal, de plantas carnívoras e quejandas, e achei que o acontecimento fazia parte desse historial, cujo curso ainda não parece ter terminado.
Quanto ao terceiro, é Donald Sutherland a protagonizá-lo, seguramente em estreia ou quase, pois o seu nome aparece na segunda leva do elenco secundário, sendo um dos cinco homens que, sem o saberem, têm a vida por um fio (novidade para ninguém, sempre esquecida). Trata-se do episódio mais cómico, de humor negro bem apurado, onde se desenrola um suspense que na cena final alcança a concisão perfeita: ficamos a saber tudo em duas palavras. Donald Sutherland acabou de se casar com um bonita jovem francesa, que ele pega ao colo à entrada da porta para cumprir o ritual americano. Estamos numa pequena cidade dos Estados Unidos, ele é médico, ela, uma vampira. Não conto o resto. Só observo que aqui é difícil vislumbrar um indício de culpa, a não ser que seja por ele dormir num quarto com duas camas, o que facilitava a vida à vampira, ou então uma advertência contra a casamentos com senhoras trazidas de França.
Quanto ao filme com hora marcada, Tabu (1931) do Murnau, nunca mais o revi e decidi não o rever agora. Foi numa sessão da tarde. Trata-se de uma assombrosa demonstração sobre a universalidade antropológica do medo do desejo e dos rituais purificativos e proibitivos que esse medo engendra, formando o chamado espaço simbólico-religioso. O que sentimos é que em lado nenhum a inocência pode vingar, que nem no paraíso a inocência da vida será perdoada.
Sempre me vem à ideia o início, o estado de natureza em estado puro sem pecado original, onde tudo vibra e nos contagia, o riso, as quedas de água, as flores (nos cabelos, nos ombros, não me lembro bem), a brincadeira sensual entre os jovens que mergulham e nadam e se abraçam e perseguem. E o final, depois de tudo isto ter sido atravessado por uma corrente de ódio e ferocidade. Passo a transcrever (com algumas pequenas alterações) “Dia alegre, dia pensante, dias fatais”:
“O homem nada, a cabeça fora da água, como é costume entre os povos arcaicos, ele nada, vemo-lo nadar, seguimo-lo, ele continua a nadar, em redor não se avista qualquer vestígio nem próximo nem longínquo de Terra. O nadador afasta-se de nós e confirmamos que é bem longo o seu caminho, na ondulação imensa ele continua a nadar só para não morrer já. Persegue-o uma imposição, uma ameaça, um não poder tocar. Será também o poeta perseguido pela desobediência a um tabu? Oscilando ritmicamente um e outro braço, mergulhando e reerguendo a cabeça, os poetas, semelhantes ao nadador ágil, correm os perigos do mar e da sua violência, a multidão que respira e ondula à volta de nós (Hölderlin na primeira versão de Dichtermut). Imagem que retorna em Arquipélago, mas agora as águas são as dos deuses, dos fortes, os que vivem da fresca ventura: Que o meu espírito, vivo e intrépido, como nadador se exercite.”
(Traduções de João Barrento e de Paulo Quintela)
Já em relação ao outro, que esperei voltar a ver na Cinemateca onde o tinha visto há uns anos pela primeira e única vez, não resisti à espera e resolvi matar a fome em formato caseiro, The Reckless Moment, um dos filmes americanos de um dos meus realizadores mais amados, Max Ophüls.
Só há dois personagens reais, Joan Bennett e James Mason, que sempre achei ter dezoito anos, talvez no seu primeiro filme. Mas não, agora, desde ontem, ele tem uns trinta anos (de facto, ia já perto dos quarenta), e não, não era o primeiro filme, nem sequer com o Ophüls. Joan Bennett manteve a idade, a caminho dos quarenta, menos um ano que ele (respectivamente nascidos em 1910 e 1909). O filme é de 1949.
O título é um guia prodigioso – ia a escrever um grito, o que também servia ou talvez seja a melhor determinação –, um momento que começa aparentemente no momento em que o filme começa, mas que se intensifica de tal modo que faz explodir a duração do momento que começara no início, arrancando aqueles dois ao sonambulismo geral, protegidos por um círculo mágico.
Também acrescentaria à lista dos que estão vivos, os tais personagens reais, Sybil, a criada negra, governanta, protectora, aquela que sente e adivinha tudo, a que acompanha como uma sombra Lucia Harper, na corrida final em que procura alcançar James Mason, e a que se oferece para a substituir ao volante no regresso a casa, depois de ela ter abraçado, suplicado e chorado sobre o corpo prostrado, moribundo de Martin Donnelly. Todos os outros cumprem as suas tarefas e funções, amáveis ou hostis, irritantes ou simpáticos, desde sempre impreparados e incapazes de vislumbrar o momento de perdição.
Joan Bennet está sempre a correr, do princípio até ao fim, a correr e a chegar sempre atrasada, sempre a fumar. Veloz, abre e fecha portas, desce e sobe escadas. Com firmeza e desespero arrasta um corpo, morto em todos os sentidos, para um pequeno barco a motor, e consegue afundá-lo longe de casa, de modo a evitar um escândalo com a filha mais velha, estudante de artes. O rapaz, muito simpático e habilidoso, é o filho mais novo; na casa vive ainda o sogro; o marido move-se de Filadélfia para Berlim, supomos que seja um arquitecto (vai fazer uma ponte em Berlim), movimento que vai do seu primeiro telefonema ao segundo e último, já depois de tudo consumado. Ela de tudo isso é prisioneira, como James Mason observa, tomado já por uma paixão cujo ímpeto se coagula em silêncio e devoção.
Tudo começou com a chantagem que ele ousa fazer-lhe directamente em casa, pedindo-lhe 5,000 dólares em troca do maço de cartas enviadas pela filha ao homem que apareceu morto quase à porta de casa deles, à beira-mar, numa pequena povoação chamada Balboa, não longe de Los Angeles.
Aliás, tudo começou com Lucia a conduzir o carro até à vizinha Los Angeles – cada um pergunta antes e perguntará depois para onde vai ela, para onde foi ela –, a fim de se encontrar com esse homem, que ela depois arrastará já morto, tentando impedir a continuação do namoro com a filha.
A história não interessa nada, à medida que avança logo se dissolve, em todas as cenas, antes e depois da ameaça de chantagem, se engendra aquele amor que nunca se declara entre uma mulher, Lucia Harper, que não vemos esboçar um gesto afectivo, nem quando a filha precisa de ser consolada, pois acabou de descobrir que o homem que ela idolatrava era um pequeno mercenário (a mãe bate-lhe ao de leve nas costas, enquanto ela chora perdidamente a caminho do quarto) e aquele homem misterioso, canalha, imprevisível, inverosímil. Mulher mais escondida nunca se encontrou, e é isso que Martin Donnelly descobre, que o fogo arde sem se ver.
Maria Filomena Molder