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Vestígios das minhas primeiras idas ao cinema: quatro figuras

por Laura Mulvey · 1 de Junho, 2020
The Red Shoes (Michael Powell, Emeric Pressburger, 1948)
The Red Shoes (Michael Powell, Emeric Pressburger, 1948)

Nasci em 1941 na Grã-Bretanha em tempos de guerra. Como passei os primeiros seis anos da minha vida no campo, não vi nenhuma imagem em movimento; não havia acesso a cinemas na zona rural de Sussex e obviamente nenhuma televisão. Mesmo quando a minha família voltou a mudar-se para Londres depois da guerra, só ocasionalmente íamos ao cinema, pelo que, nestas circunstâncias, consigo recordar-me muito nitidamente dos primeiros filmes que vi. Recentemente apercebi-me que, em particular, quatro cenas das minhas primeiras idas ao cinema deixaram uma espécie de imagem persistente na minha memória. Além disso, não só estão visualmente ligadas como, por assim dizer, estranhamente prefiguram o meu fascínio muito mais tardio (os anos 90) com o fragmento fílmico. Quero tentar reconstruir aqui as quatro cenas, a razão pela qual me impressionaram em criança e porque é que estas imagens persistentes ainda hoje significam algo para mim.

O primeiro filme que vi foi Nanook of the North / Nanuk, O Esquimó (1922), provavelmente por causa do meu pai, que era canadiano e tinha um interesse particular pelas comunidades inuítes. Ele subiu o rio Mackenzie até ao Círculo Ártico e passou algum tempo a viver com “esquimós”, como eram chamados então, antes de se alistar no exército e vir para Inglaterra durante a guerra. Deve ter havido alguma reposição de Nanook em Londres no final dos anos 40. O segundo filme foi, mais tradicionalmente, The Red Shoes / Os Sapatos Vermelhos, lançado em 1948, portanto mais ou menos pela mesma época. Por esta altura, eu e a minha irmã tínhamos (primitiva mas entusiasticamente) aulas de ballet e, para nós, tal como para muitas raparigas da minha geração loucas por ballet, The Red Shoes era uma óbvia e muito especial delícia. Em 1951, fomos ver The River de Renoir, que teria um encanto duplo. De novo, num primeiro momento, foi parental: quando a minha mãe esteve em Oxford no final dos anos 20, tornou-se uma dedicada cinéfila, apontando os filmes que via um caderno e Renoir era um favorito seu. O romance de Rumer Godden deveria ter um apelo adicional: um grupo de raparigas, as suas amizades, as suas rivalidades, o primeiro amor, etc. num cenário indiano exótico e estranho. (Além disso, por volta de 1951, por razões em que não vou entrar aqui, a minha mãe levou-me a ver An American in Paris / Um Americano em Paris. Apesar de ter sido uma experiência muito memorável, não me deixou qualquer “imagem persistente”.) O último filme apareceu mais tarde: Robinson Crusoe / As Aventuras de Robinson Crusoe, de Buñuel. Quando saiu em Londres em 1954, fui com um colega de escola, levada pela sua muito sofisticada mãe. Devo ter visto alguns filmes por esta altura, mas Robinson Crusoe é o último na série de filmes de que aqui quero falar.

Os filmes Nanook of the North, The Red Shoes, The River e Robinson Crusoe permaneceram vagamente na minha memória. Mas foi só quando estava a pensar sobre a imobilidade e a imagem em movimento, sobre a fusão do animado e do inanimado no cinema (pensamentos que finalmente se combinaram em Death 24x a Second) que estes quatro momentos de estranheza voltaram a mim, devolvendo poderosas imagens visuais que tinham persistido no curso de uma mais tardia vida de espectadora de cinema. O que aconteceu foi pois isto: enquanto redescobria estes vestígios das primeiras memórias, eles pareciam estar em sintonia com os interesses mais teóricos do meu eu de aproximadamente 45 anos, que sobrepus retrospectivamente.

Antes de mais, existe a imagem de Nanook a lutar com um peixe que apanhou através de um buraco no gelo, mas que não consegue trazer à superfície. Ele agarra-se à cana e linha; o seu corpo, na minha memória pelo menos, anda às sacudidelas, os seus movimentos perdem fluência e calma normais. Além disso, a força que está a agir sobre ele é invisível e, em certo sentido, misteriosa. Na minha imaginação retrospetiva, a figura des-naturalizada de Nanook parecia incorporar, no ecrã, o movimento irregular da película quando corre no projetor. Parecia que o efeito ótico, o fenómeno Phi, com que o projetor cria a ilusão do movimento fílmico e agiliza o corpo humano no ecrã, perdera subitamente a sua eficácia.

Em segundo lugar, durante vários anos, a única imagem que retive de The Red Shoes vinha do ballet “The Red Shoes”. Vicky dança num parque de diversões num cenário crescentemente surreal e fantástico. Subitamente, um pedaço de jornal é apanhado pelo vento; muda para a forma de um homem, que dança por aí fora com ela. O homem de papel nunca se torna um homem de verdade; ele vacila entre a forma de um homem e a da sua substância de origem. Para mim (de novo, retrospectivamente), esta figura materializava a desfocagem inquietante do cinema entre animado e inanimado, lembrando que a aparência do movimento humano no ecrã é uma fantástica ilusão criada pela sucessão de fotogramas que correm no  projetor. Jean Epstein disse do cinema: “uma transformação tão maravilhosa como a geração de vida a partir das coisas inanimadas.”

Em terceiro lugar, The River. Surpreendentemente, a cena que ficou na minha memória não tinha nada que ver com o romance no filme, com as raparigas adolescentes e os seus primeiros amores. Lembro-me do fascínio do menino com a cobra que procura domar tocando uma flauta e trazendo ofertas de leite. A cobra vive nas raízes de uma gigantesca árvore e, quando finalmente aparece, a sua forma longa e enrolada parece trazer à vida as longas extensões da raiz que compunham a sua casa. De novo: a fusão entre o animado e o inanimado, mas que é inquietantemente engrandecida pelo maravilhamento do menino face à misteriosa criatura. Embora ele possa alimentar a esperança de domar a cobra, também a trata como um deus e, no fim, ela acabará por matá-lo.

Finalmente, Robinson Crusoe. Numa cena que guardei para sempre, Crusoe cria um espantalho para proteger a sua colheita. De algum modo (não me recordo, pois não revi o filme) encontrou roupa de mulher que usa para transformar o espantalho numa companheira. À medida que Crusoe acaricia e abraça o objeto de madeira, o meu eu de 12 anos ficou ao mesmo tempo chocado e fascinado. Trata-se de novo de uma imagem do inanimado animado, mas menos pela mecânica do cinema que pela mecânica do desejo masculino. Claramente, para o meu eu tardio, de Death 24x, esta imagem persistente da memória prefigurava o meu interesse pela fetichização do corpo feminino no e através do cinema, o que não é tanto uma tentativa de trazer à vida um objeto desejado, mas de contê-lo na inquieta incerteza do belo autómato.

Todas estas figuras têm alguma relação com a fusão do animado e inanimado no cinema, o que, por sua vez, leva ao processo da projeção fílmica. O projetor foi sempre a mais reprimida e mais misteriosa das máquinas industriais de cinema. Ruidosa e sem graça, estava escondida na parte de trás da sala. Mas era a fonte da magia do cinema: enganando o olho humano para criar a ilusão do movimento enquanto séries de fotogramas individuais são transformadas num fluxo estável e contínuo. Agora, na era digital, a invisibilidade foi tomada pelo desaparecimento e o projetor ganhou pungência à medida que o seu uso se desvanece na história. Estas memórias são um tributo consciente à maneira como a magia do projetor parece ter tomado conta do inconsciente da minha infância, de uma maneira ou outra, entre as idades formativas de seis e doze anos.


Laura Mulvey

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